Participação em Suicídio

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas181-199

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6.1. Prolegômenos

Tradicionalmente, o suicídio, também denominado autoquiria ou autocídio, é conceituado como a deliberada destruição da própria vida. Consiste na morte que alguém dá a si mesmo. É a deserção da vida realizada por ato próprio.

O suicídio não constitui crime, sequer em sua forma frustrada.

Como escreve Anibal Bruno, a morte que um homem dá a si mesmo escapa à consideração do Direito Penal. Não é que se reconheça ao homem a faculdade de dispor da própria vida e encerrá-la quando as circunstâncias a isso o tenham compelido. A não-incriminação do suicídio não exclui a sua fundamental ilicitude452.

A propósito, bem disserta Nélson Hungria, a vida de um homem não pertence a ele só, mas também ao agregado social. O direito de viver não é um direito sobre a vida, mas à vida, no sentido de correlativo da obrigação de que os outros homens respeitem a nossa vida453. A indisponibilidade do bem jurídico vida (n. 1.4) é que torna a autoquiria um ato ilícito perante o ordenamento jurídico. Tanto isso é exato que a coação exercida para impedir a consumação de um suicídio não constitui crime (art. 146, § 3º, n. II, CP).

Pertence aos tempos de antanho e a épocas primevas a punição do suicida, quer pela privação de sepultura, excomunhão, exposição do corpo despido em lugar público, amputação das mãos ou mutilação etc. Se o suicídio está consumado, seu agente deixou de existir e escapou à consideração do Direito Penal, como escapou à vida454, pois mors omnia solvit. Acentua Frederico Marques que, do ponto de vista retributivo, não se pode cuidar da pena contra um cadáver e, do ponto de vista intimidativo ou preventivo, seria inútil a ameaça da pena contra quem já não se atemoriza sequer com a privação da própria vida455. De outro lado, ressai incabível cogitar da punição dos familiares do suicida, quer penal, quer civil por meio de seus efeitos patrimoniais. Preceito que impusesse tal sanção estaria em confronto antagônico com a natureza personalíssima da pena,

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porquanto puniria pessoas estranhas ao ato do que se matou. Como já realçava Beccaria, a pena ou irá recair sobre inocentes, ou sobre um corpo frio e insensível456.

Se o suicídio se frustra, porque seu autor sobrevive à tentativa de eliminar a própria vida, crível é que o fato igualmente se coloca arredado da esfera punitiva. Ad primum, porque, fosse erigida a tentativa de suicídio como crime autônomo, a ameaça de inflição da pena que coubesse ao suicida malogrado somente iria intensificar a carga de angústia, depressão, melancolia, aflição, desespero e expiação por ele suportada, de sorte que representaria novo estímulo, alento ou impulso a encorajá-lo para a reiteração do ato tendente à deserção da sua existência, a reforçar e retemperar ainda mais o seu tresloucado desígnio. Mais: é princípio do Direito Penal pátrio (princípio da alteridade) que ninguém pode ser, ao mesmo tempo, por conduta própria, sujeito ativo e passivo de crime457, o que ocorreria na tentativa de autocídio. Só por exceção, aponta Anibal Bruno, encontram-se legislações em que se define a tentativa de suicídio como crime, a exemplo da posição do direito inglês, de algum código estadual norte-americano, da Bolívia etc.458Doutrina Heleno Cláudio Fragoso que, como o suicídio não é crime, a participação no suicídio alheio normalmente não poderia ser incriminada. Só há participação punível em fato delituoso. Os Códigos modernos, entretanto, estabeleceram uma figura de crime sui generis, com o simples induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio459. A

participação no fato ilícito impunível do suicídio é, então, observa Custódio da Silveira, considerada um tipo legal delitivo autônomo460. Desde que o suicídio não é fato punível, a colaboração prestada àquele que quer matar-se não pode ter o caráter de verdadeira participação no crime de outrem: toma o aspecto de um crime por si mesmo461. Justifica-se a punição da coadjuvação, induzimento ou ato de instigar no suicídio, porque se trata de colaboração a ato ilícito que atinge um bem jurídico em que se consubstancia o mais alto dos valores humanos462.

Para esse mister, nossa legislação penal incluiu, no rol dos dispositivos incriminadores, o art. 122, que edita: "induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça".

6.2. Ações incriminadas e meios de execução

O delito apresenta-se com três elementos nucleares, que são: induzir, instigar ou prestar auxílio.

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Induzir e instigar constituem formas de participação moral no suicídio. Representam condutas que se realizam e repercutem na esfera psíquica e intelectiva da vítima. Vale-se o agente da persuasão e sugestão, de meios suasórios pelos quais, aproveitando-se de um estado de maior vulnerabilidade, enfraquecimento psíquico ou fragilidade do sujeito passivo, almeja fazer com que a vítima visada, vencendo o instinto de autoconservação, se deixe convencer e assimile o propósito de eliminar a própria vida.

Na ação de induzir o sujeito ativo incute, faz germinar, nascer e surgir no espírito do sujeito passivo a deliberação suicida. Introduz no pensamento da vítima ideia que ela antes não elaborara ou concebera. O induzimento, como destaca Hungria, pressupõe a iniciativa na formação da vontade de outrem463. No induzimento, ressalta Olavo Oliveira, a preponderância psíquica cabe ao agente464.

Pela instigação o sujeito ativo aproveita-se de resolução já concebida pela vítima e então lhe dá, pela sugestão, novo alento e impulso, açulando, reforçando, robustecendo, revigorando, acoroçoando ou encorajando um propósito já existente e estabelecido, emprestando-lhe novo estímulo e ânimo. Como pontifica Anibal Bruno, aqui o desígnio de matar-se preexiste: a instigação lhe dá o necessário impulso para transformá-lo em ação465. O que leva a cabo a instigação - remarca Frederico Marques - atua como catalisador de resolução já existente466.

Como obtempera Euclides Custódio da Silveira, é imprescindível que o induzimento ou a instigação vise a uma pessoa determinada. O escritor ou articulista que faz apologia do suicídio não responde pelo delito em exame se alguém se deixa influenciar pela leitura. É famoso o livro Werther, de Goethe, que tantos suicídios provocou, a ponto de ser proibida a sua venda na cidade de Leipzig, em 1775467. A esse respeito, diz muito bem o Min. Ari Franco, o induzimento ou a instigação deve ser feito a uma determinada pessoa, pois o preceito legal emprega o termo alguém e não basta induzimento ou instigação de caráter geral, que os tratadistas chamam a sugestão literária do suicídio468.

Inexiste, portanto, ação de induzir ou instigar in incertam personam.

As ações incriminadas, destarte, devem endereçar-se a uma pessoa determinada ou a um grupo determinável de pessoas. Dessa última situação são exemplos: o suicídio coletivo de grupo religioso acontecido na Guiana, em 19 de novembro de 1978, quando 912 pessoas da seita Templo do Povo se mataram ao ingerir uma bebida com cianureto por sugestão de seu líder Jim Jones; o suicídio, no Vietnã, em 11 de outubro de 1993, de 53 habitantes da localidade de Ta He que se imolaram a tiros por incutimento do líder cego Ca Van Liem; o suicídio, por meio de bebida envenenada, de 39 seguidores da doutrina Heaven’s Gate, em rancho situado na localidade de San Diego, Califórnia

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(EUA), em março de 1997, sob a influência de seu guia Marshall Applewhite, que professava que todos teriam uma nova vida ao serem resgatados por nave espacial que seguiria o cometa Hale-Bopp.

Frisa Nélson Hungria não ser necessário que o agente faça o induzimento ou a instigação abertamente à vítima. A conduta pode ser realizada também ardilosamente. Há induzimento ardiloso no seguinte caso figurado por Manzini: dois cônjuges mutuamente se juram que um não sobreviverá ao outro e, depois de algum tempo, o marido, que na realidade queria desfazer-se da esposa, ausenta-se do lar e faz com que seja levada a notícia de sua morte à crédula mulher que, fiel ao juramento, se suicida469. Igual, para a ilustração de induzimento insidioso: o médico, ciente que seu paciente é hipocondríaco, temeroso da dor, desejando a sua morte para ficar com a esposa, sua amante, dá-lhe a notícia falsa de grave moléstia, de evolução dolorosa e desfecho letal, de modo a levar o seu cliente à eliminação da própria vida. Ou: sabendo o sujeito ativo que a vítima é pessoa altamente influenciável e que passa por sérias dificuldades, deixa-lhe ardilosamente, à cabeceira da cama, livro que faz apologia do suicídio, levando a vítima, no caso deter-minada, a suicidar-se.

Já na prestação de auxílio o sujeito ativo atua fisicamente, mediante meios materiais, porém a latere, o que significa dizer secundária e acessoriamente, como mero coadjuvante, para a autoquiria consumar-se. Assim, presta auxílio em suicídio quem cede ao desertor da vida, ciente do seu escopo, a corda para enforcar-se, o veneno para a ingestão, o revólver ou faca para o disparo ou golpe letal, quem lhe fornece instruções pertinentes ao modo como o instrumento deverá ser utilizado, que partes vitais do corpo devem ser atingidas, a dosagem devida do veneno, como alcançar morte mais rápida ou indolor ou, finalmente, ilustra Olavo Oliveira, monta guarda ao local, onde se vai dar o suicídio, para este não ser evitado470.

Mas sempre será preciso, para a configuração jurídica da participação em suicídio mediante auxílio, que o agente atue como mero coadjuvante na morte alheia, que colabore subsidiariamente na sua execução, participando dos atos meramente preparatórios. Se ele intervém direta e imediatamente na execução, tonaliza-se tipicamente o crime de homicídio. Por conseguinte, bem realça Olavo Oliveira, o sujeito ativo - na prestação do auxílio -...

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