Paths of counterhegemonic discourse: Law and emancipation/Caminhos do discurso contra-hegemonico: Direito e emancipacao.

AutorFerrare, Thiago
CargoTexto en portugues - Ensayo

Introducao

O modo atual de se compreender o direito pouco se aproxima daquilo que se fez no apice da modernidade. Legitimada a partir das capacidades pratico-cognitivas do sujeito racional, a ordem juridica moderna constroi-se como expediente de ordenacao do caos social, como instrumento de gestao da vida compartilhada. Nessa percepcao--e dada a pressuposicao do carater autocratico e solipsista da formacao da subjetividade--, a conflitualidade da interacao entre individuos nao e dado nenhum valor positivo; antes, tal conflitualidade apresenta-se como alvo das pretensoes abstratas do direito: uma ordem estavel deve inibir a producao de conflitos sociais.

Tao logo se deu a retomada de Aristoteles no ambiente da filosofia poskantiana --retomada que se faz evidente na figura de Hegel, em especial--, o sujeito concreto assume papel central nas reflexoes sobre politica. A razao autocratica e lancada no mundo, de onde se segue que o ponto de partida da tematizacao do ideal de legitimidade ganha referencia ao solo da vida comunitaria. Diante desse quadro, o reconhecimento da estrutura normativa que inevitavelmente conforma o mundo social traz consigo a possibilidade de se compreender o direito nao mais como maquinario externo as praticas intersubjetivas, mas como espaco de constituicao e tematizacao de tais praticas. A emergencia de movimentos sociais identitarios corrobora essa tese: a necessidade de uma universalidade que faculta a mediacao dos diversos particularismos nos incita a pensar o direito como razao historicamente possivel.

Se o direito traz em si a potencialidade para efetivar-se enquanto espaco da articulacao publica de pretensoes de liberdade, e importante tomar por objeto de analise as condicoes da concretizacao de tal potencialidade. E nesse contexto que ganha sentido a referencia a tecnica. Compreendida como modelo abstrato de justificacao de acoes, a tecnica pressupoe a incapacidade da vida social para constituir-se como normatividade espontanea, como fonte de impulsos criticos imanentes. Pela absolutizacao do agir tecnico, o potencial emancipatorio do direito da lugar ao formalismo: o substrato material do fenomeno juridico--e, portanto, a historicidade dos discursos contra-hegemonicos--e apagado pelo privilegio da unidade abstrata, do conceito vazio.

No intuito de fundamentar essa tese, comecaremos pela compreensao daquilo que, na linha de Horkheimer (1980, p. 154), se costuma chamar de teoria critica da sociedade. Nesse ponto, restara clara a ideia segundo a qual a compreensao critica da realidade envolve a tematizacao das condicoes para a articulacao publica do sofrimento individual (2). O passo seguinte envolve a investigacao sobre uma possivel nota distintiva do padrao operativo do direito nas sociedades contemporaneas, o que implica a construcao de uma oposicao entre duas concepcoes do direito: como instrumento de controle social e como espaco de tematizacao de conflitos desencadeados por demandas de liberdade (3). Por fim, a tecnica surge como meio de obstrucao dos caminhos do discurso emancipatorio, a medida que abstrai da forca constitutiva dos conflitos axiologicos e direciona a busca pela legitimacao do direito para instancias estritamente formais (4).

  1. Razao pratica como eticidade: Kant, Hegel e a teoria critica

    A filosofia social moderna se constroi por oposicao a certos ideais da teoria politica classica. Naquilo que mais de perto nos interessa, pode-se dizer que tal oposicao toma por objeto duas ideias, ambas formuladas por Aristoteles (1985, p. 15): em primeiro lugar, trata-se da tese do zoon politikon, o ser politico cuja autossuficiencia somente se alcanca na comunidade; em segundo, da ideia correlata segundo a qual a polis tem precedencia em relacao ao individuo isolado. Veja-se brevemente o sentido da contraposicao moderna a tais ideias.

    Articulando dimensoes filosofico-politicas de sua fisica--articulacao que se expressa na advertencia no sentido de que "o que cada coisa e quando o seu crescimento se completa nos chamamos de natureza de cada coisa"--, Aristoteles (1985, p. 15-6) poe em relevo a natureza politica do ser humano. Dai se segue que o sujeito isolado nao se encontra plenamente constituido enquanto esta fora da comunidade politica: o impulso a autossuficiencia o leva a interacao social. Ao impulso na direcao da autossuficiencia a teoria social moderna opoe o impulso a autoconservacao, de modo que nao mais se pode supor a existencia de atos voluntarios que nao estejam voltados ao beneficio exclusivo daquele que o pratica (MAQUIAVEL, 1983, p. 70). Da universalizacao desse ideal egoista de autoconservacao se pode extrair o pressuposto liberal que inverte o primeiro dos postulados aristotelicos: a ideia de que, muitos antes de adentrar a comunidade politica, o sujeito ja se encontra plenamente constituido em suas capacidades pratico-cognitivas.

    Corolario dessa inversao de premissas e tambem o abandono da segunda das teses de Aristoteles referidas acima. Se os processos de constituicao e autorrealizacao individuais tomam forma a despeito da insercao comunitaria do sujeito, nao ha mais sentido em se falar de anterioridade da polis. Assim se ve nascer a ideia que constitui o amago dos projetos liberais mais desenvolvidos: o atomismo ou, na formulacao mais difundida, o individualismo metodologico. A plenitude do sujeito isolado do mundo passa a ser a fonte de toda normatividade social, nao mais se concebendo um poder legitimo que nao esteja justificado no foro intimo de cada um dos individuos.

    O avanco na direcao de nossa construcao argumentativa pressupoe o aprofundamento na analise critica de tal pilar do liberalismo politico. A luz do que foi dito, pergunta-se: o que define o sujeito que, no amago do projeto liberal, celebra contratos constitutivos do poder legitimo, figura na posicao original e participa do leilao voltado a distribuicao justa dos bens sociais? Define-o a fragmentacao.

    As voltas com sua cega busca pela autopreservacao, o sujeito pratico so reconhece no mundo aquilo que e produto de sua vontade carente de conteudo socialmente compartilhado. A instancia de validade, portanto, se absolutiza enquanto moralidade subjetivizada: os criterios da critica legitimadora sao supostamente acessiveis a todo e qualquer individuo que se proponha a agir racionalmente (HOBBES, 1999, p. 131; LOCKE, 2006, p. 88), de onde se segue que a interacao social nao constitui padroes normativos objetivos, senao que reproduz aqueles padroes que foram alcancados pela razao autocratica do sujeito. Ao objeto carente de sentido, portanto, corresponde o sujeito doador de sentido (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 25).

    Sob o ponto de vista historico, tal concepcao de sujeito deita suas raizes a partir de um entrelacamento com o desenvolvimento da ordem capitalista. De fato, o seculo XIX viu surgir um novo padrao de exercicio da liberdade, que e justamente aquele que se desenrola na forma de "atos isolados e racionais de troca entre proprietarios isolados de mercadorias" (LUKACS, 2012, p. 209). Aqui se ve a efetivacao historica do ideario burgues da propriedade privada como esfera negativa intangivel; mais do que isso, como esfera negativa a qual corresponde o sentido da realizacao individual na forma de negacao absoluta de determinacoes sociais. Naquilo que mais de perto nos interessa, foi Lukacs quem diagnosticou a tendencia patologica desse modelo liberal de exercicio da liberdade:

    De um lado, os homens quebram, dissolvem e abandonam constantemente os elos "naturais", irracionais e "efetivos", mas, por outro e ao mesmo tempo, erguem em torno de si, nessa realidade criada por eles mesmos, "produzida por eles mesmos", uma especie de segunda natureza, cujo desdobramento se lhes opoe com a mesma regularidade impiedosa que o faziam outrora os poderes naturais irracionais (mais precisamente: as relacoes sociais que lhes apareciam sob essa forma) (LUKACS, 2012, p. 271-72).

    A referencia a ideia de segunda natureza so pode ser compreendida a luz do status subalterno com que a filosofia moderna marcou a natureza: um puro dado cujos aspectos qualitativos sao irrelevantes. Nesse sentido, o referido trecho guia-nos a percepcao daquilo em que se converteu a versao liberal do ideal moderno de autodeterminacao. Calcular com a maior antecedencia possivel a direcao da reproducao imediata do mundo social e "adotar uma posicao em que esses efeitos oferecam as melhores oportunidades para seus fins" (LUKACS, 2012, p. 274): eis o seu sentido preciso no ambito da sociedade capitalista.

    Quer isso dizer, em resumo, que o grandioso projeto de emancipacao pelo esclarecimento--o projeto de superar a menoridade (KANT, 1985b, p. 100-17) a partir da crenca no sujeito e em sua capacidade de orientar-se autonomamente no pensamento (KANT, 1985a, p. 70-99)--acabou por converter a capacidade cognitiva do individuo em uma especie de maquina de fazer calculos; maquina essa que toma por objeto tanto as diretrizes do mundo social quanto os impulsos do sujeito fragmentado. Nesse ultimo sentido, o intelecto dominador orienta o agir racional a se fazer valer diante daquilo que e intuicao. Assim e que os talentos do sujeito--mas tambem os seus defeitos--, a medida que sao apropriados pelas leis formais da producao mercantil, tornam-se coisas que assumem, tais quais as mercadorias comuns, valores positivos ou negativos de acordo com os criterios de reproducao simbolica e material que dao conteudo a segunda natureza na ordem capitalista. Nesses termos, o sujeito passa a estranhar-se de si mesmo, sofrendo a angustia de ver partes de sua personalidade sendo apropriadas por leis abstratas sobre as quais nao tem controle; dito de outro modo, o sujeito fragmentado passa a contemplar-se a si mesmo: "a personalidade torna-se o espectador impotente de tudo o que ocorre com sua propria existencia, parcela isolada e integrada a um sistema estranho" (LUKACS, 2012, p. 205).

    Mais caras ao nosso intento, porem, sao as consequencias do...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT