De Patricia Williams A Patricia Collins: Raca, Critica E Feminismo/From Patricia Williams to Patricia Collins: Race, Critique, and Feminism.

AutorPontes-Saraiva, Ana

"O mundo ao nosso redor cresce e nós vamos diminuindo. Nossas vozes, que outrora refletiam a primavera, passam a ser silenciadas de maneira tão violenta que acabamos esquecendo que possuímos uma voz e não precisamos da de ninguém para definir quem somos".

Patricia Hill Collins, Black Feminist Thought

"Minha irmã e eu [...] discutimos sobre a cor da estrada. Eu disse preta, ela disse violeta. Depois de insistir até fazêla admitir que a estrada era preta, meu pai me disse gentilmente que minha irmã, no entanto, a via violeta. No momento aquele comentário não me comoveu, mas com o passar dos anos e muito mais observação, cheguei a ver infinitas estradas levemente mais violetas que pretas. Minha irmã e eu provavelmente discutiremos sobre os matizes dos caminhos da vida para sempre. Mas a lição que aprendi, escutando suas loucas percepções, é que realmente é possível ver coisas--inclusive as mais concretas--ao mesmo tempo e de maneira distinta; e que, ver ao mesmo tempo e de distintas maneiras, se faz mais facilmente com duas pessoas do que com uma, embora alguém sozinho possa aprender a fazêlo com tempo e esforço. Patricia J. Williams, Alchemical Notes: Reconstructing Ideals from Deconstructed Rights 1 Notas introdutórias

As contribuições de Patricia Hill Collins (1948-) expõem, entre outras reflexões, o pensamento feminista negro amparado na interseccionalidade de raça, gênero e classe como ferramenta metodológica de análise. Isso é especialmente interessante porque oferece um olhar sobre os elementos na incidência político-jurídico-cultural para superar opressões racistas-patriarcais-classistas-heterossexistas. A obra de Collins tem recebido, ao longo dos anos, crescente atenção, embora ainda não tenha atingido reconhecimento compatível com sua qualidade técnica. Como observou a própria teórica, é eloquente que se tenham passado mais de trinta anos para que fosse publicado no Brasil seu livro Pensamento feminista negro, a despeito do intenso tráfego de autores e autoras estadunidenses no Brasil. Hill Collins notou que tanto obras acadêmicas como literárias de mulheres negras são pouco traduzidas ou demoram muito para chegar a outras línguas, por uma razão pouco evidente para alguns: a atitude proposital daqueles no poder--e mulheres negras não estão no comando do que é publicado - tanto em jornais, quanto em editoras, muito menos na política. Caso mulheres negras comandassem algumas dessas instâncias, talvez houvesse mais trabalhos intelectuais representativos. Todavia, como é notável, o que acontece comumente é que uma autora negra precisaria ser vista como excepcional para ser dissociada do que é "comum" e ser reconhecida como exceção. (1) Não por acaso, na mesma entrevista, Patricia Hill Collins assinala que a celebrização da biografia de Michelle Obama demonstra essa combinação de "excepcionalidade" e celebridade, reforçando o sexismo, o classismo e o racismo (2).

Nesta abordagem, desejamos um pouco mais do que ampliar a lista de artigos que publiciza a obra de duas teóricas contemporâneas: queremos percorrer a trajetória das contribuições de Patricia Collins ligando-a a um caminho dialógico com as reflexões de Patricia Williams e estabelecendo pontos de contato dentro do feminismo interseccional. Em especial, ante a crítica da instrumentalidade teórica elaborada dos Critical Legal Studies (CLS), que tanto ensaiaram novos caminhos para enfrentar a realidade jurídicopolítica hegemónica como operaram as contranarrativas que ressituaram pessoas em suas particularidades e contingências. Mais especificamente, nos interessam as contribuições para enfrentar realidades invisibilizadas mediante o componente raça, destacado por Williams, e da defesa da interseccionalidade trabalhada por Hill Collins. Naturalmente, pensamos sobre como essas contribuições ganham significado na realidade brasileira.

A escolha não é sem razão: Patricia J. Williams (1951-), doutora pela Harvard Law School, elabora produções interdisciplinares em que analisa gênero, raça e classe no pensamento jurídico a partir de perspectiva pessoal desde a metade da década de 1980.Patrícia Williams já apresenta uma visão interseccional, posto que este olhar é muito mais intencional que um rótulo acadêmico: ainda que não use o nome, Williams já se mostra interseccional desde "Alchemy of Races". Integrante de uma das correntes que floresceram com o arsenal teórico elaborado pelos crits--mas não apenas, como aqui defendemos - enfrentou realidades das quais outros não se aperceberam. Defensora da teoria crítica da raça, escola de pensamento jurídico que evidencia a raça como determinante fundamental do sistema jurídico americano, Williams é uma das principais representantes da corrente teórica denominada Critical Race Theory (CRT), que contribuiu com uma das mais marcantes e bonitas dissonâncias em relação à corrente dominante dos Critical Legal Studies (CLS). Patricia Williams desenha um caminho que traz inegáveis repercussões epistemológicas quando desta contribuição. E um dos pontos mais fulgurantes compreende sua capacidade de destacar como o racismo se aclimata nas exclusões várias, que traz o entendimento contemporâneo que permite a compreensão, por exemplo, da supressão de visibilidade de pessoas com deficiência negras ou do movimento queer negro dentro das lutas coletivas negras.

Uma das situações se levanta, portanto, quando intelectuais negras como Patricia Collins conduziram a discussão geral do pensamento feminista negro como teoria social crítica, em processo consciente de desmascarar racismos e demais formas de opressão com ele articuladas, chamando-nos a olhar através do espelho que permite ver nossa verdadeira face como sociedade. Contemporâneas, não há tanta luz sobre um fato marcante: ambas influenciaram-se de formas diversas com seus trabalhos, e essa troca se multiplica em pequenas e belas minas d'água fascinantes da epistemologia do pensamento feminista negro.

O olhar pronunciado de Patricia Hill Collins reverbera em Patricia Williams em diversos momentos, em especial quando esta alimenta a Critical Race Theory na posição de que não é razoável preferir substituir "demandas por direitos" por outras que focassem "necessidades"--como observou em crítica a teses dos CLS--, pois negras e negros teriam sua vulnerabilidade protegida e obteriam possibilidade de fugir de estereótipos por meio da linguagem dos direitos. (3)

Essas contribuições são parte de um legado precioso, que permite trilhar percurso que nos toca, como brasileiras, mais particularmente. Advogamos, por óbvio, a necessidade de temperança com a realidade afro-brasileira. É fato que tanto a herança dos CLS como da CRT banhadas pelo feminismo negro estadunidense, como escolhemos analisar, tem particularidades. Portanto, não faria sentido ser transposto "acriticamente" (4) pelos movimentos e organizações críticos do Direito, como não devem ser pelos movimentos de mulheres negras no Brasil. Não perdemos de vista, dessa maneira, que nossas hipóteses ao investigar as aproximações intelectuais entre ambas se manterá alerta a este aspecto, sobretudo como essas ponderações podem contribuir com nossa realidade.

Usando o método de abordagem dedutivo e análise bibliográfico-documental, mas não apenas, seguiremos nessa empreitada. Sob o prisma ancestral, optamos pela escolha metodológica traçada por Lélia Gonzalez e partilhada por Patricia Hill Collins de ressaltar a presença das que iniciaram antes e das que virão depois. Comprometer-nos com os princípios de ancestralidade e memória como pilares dos princípios ontológicos africanos, sendo as mulheres negras reconhecidas como suas portadoras, é um de nossos focos. Inserimos a busca por pesquisar as "interseccionalidades" entre duas autoras em um olhar também interseccional feminista e observamos como os braços dos "rios" reflexivos de uma desaguam em outra, como se alimentam e como se distanciam.

Jogar mais luz sobre a visão do feminismo negro como epistemologia de referência para valorização e reconhecimento do pensamento das mulheres negras como intelectuais, e como este pensamento deu características únicas à contribuição de Williams aos CLS é o ponto mais largo desse curso d'água que almejamos. Ele não seria diferente a partir de nossa escolha de mulheres que sabem ser rios, âncoras e lemes.

2 A mesma mátria (5) imaterial. Para além do prenome, caminhos interseccionais

É curioso que ambas as autoras tenham recebido um prenome inspirado nos patrícios romanos e como essa situação amplia o sentido ao ser dada entre homens ou entre mulheres. No masculino, o prenome significava pertencimento a uma nobreza que se via e se reconhecia como tal. Parte desse reconhecimento se devia a uma condição de cidadania convenientemente negada às mulheres, em especial às pessoas escravizadas.

O mesmo prenome, no feminino, desloca em parte seu sentido: já não se vincula à nobreza, mas à ideia de identificação: a palavra "patrícia" passa a compreender a identificação de pessoas que nasceram na mesma pátria ou são conterrâneas. Essa inspiradora curiosidade alinha os primeiros pontos de Patricia Williams e Patricia Collins em que, como fios, se unem críticas raciais a teóricas feministas no intuito de romper a ideia de particularidade de determinados problemas e injustiças típicos de alguns grupos sociais. Perfilar suas trajetórias acadêmicas e identificá-las reforça a ideia de que "o pessoal é político", buscando evidenciar injustiças relacionadas a raça e gênero.

De braços dados à storytelling, seguem ambas embaladas corajosamente com o rosto à mostra enquanto demarcam o quanto o pessoal é político, bem como que "um galo sozinho não tece a manhã (6)". Pois escrever, compartilhar e despertar o "querer saber" constitui enfim um entrelaçamento dos conteúdos percebidos pela diversidade de olhares que permite a tessitura de saberes coletivos. A beleza do trabalho entretecido vai justamente de como Williams vai desenredando várias camadas: traz, por...

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