O patrimônio de afetação e as empresas individuais de responsabilidade limitada

AutorMaria Antonieta Lynch
Páginas100-108

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1. A limitação da responsabilidade do empresário individual

A limitação do risco para o empresário individual se apresenta como um instrumento promotor de novas atividades e negócios, estimulando a criação de agentes econômicos empreendedores, que, com modestos capitais, contribuem para o desenvolvimento da nação.

A adoção de um regime patrimonial diferenciado para esta categoria de empresários assumiria relevante importância para a economia brasileira, pois, o tipo jurídico - firma individual - tem presença expressiva, segundo os dados disponibili-zados pelo DNRC, que fornece dentre outras informações, o quantitativo de constituições anuais.

As estatísticas oficiais indicam que mais da metade das atividades econômicas nacionais são exercidas por empresários individuais, o que deixa clara sua predominância na economia.

Ressalte-se que sequer especulamos os percentuais referentes àquelas sociedades limitadas que na realidade têm uma constituição fática diferente da legal, posto que sem representar uma verdadeira reunião de pelo menos duas pessoas que dese-jam unir esforços para alcançar um mesmo objetivo, externam-se sob essa forma apenas para cumprir os requisitos legais alcançando assim, a limitação patrimonial.

Deste modo, se nas atuais condições - pouco favoráveis - temos ampla utilização da firma individual, lógica e coerente é a recomendação no sentido de adotar um novo instituto que os afaste deste tipo jurídico, na feição como hoje está posto.

Assim, deve facilitar-se a iniciativa individual, minimizando as dificuldades que travam o desenvolvimento de atividades produtoras de bens e serviços, que pode ocorrer através de um instituto eqüitativo e isonômico capaz de limitar a responsabilidade do seu titular, nos moldes do tratamento dispensado às sociedades empresárias.

As vantagens não se restringem à seara econômica, mas também podem ser perceptíveis no campo social. A limitação patrimonial outorga ao empresário uma relativa seguridade pessoal, pois a parte de seu patrimônio que não foi destinada à exploração do novo negócio, fica protegida da ação dos credores da empresa. Assim, o patrimônio pessoal/privado do empresário assegura a subsistência de certos bens indispensáveis a ele e a sua família.

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Evitam-se ou diminuem os negócios simulados, assim como o fechamento irregular de firmas individuais que desaparecem sem deixar rastros.

A atual ausência no Brasil de um instrumento legal que permita ao empresário individual limitar sua responsabilidade no mundo dos negócios, acarreta inevitavelmente a formação de sociedades fictícias.

2. Meios técnicos

O problema da natureza jurídica dos meios aptos a limitar a responsabilidade do empresário individual é talvez o ponto mais controvertido do tema como um todo. As soluções propostas pela doutrina são as mais variadas.

Nos últimos anos diversos países têm incorporado o princípio aos seus ordenamentos pelo reconhecimento de algum meio técnico-jurídico.

Alguns optaram por constituir um instituto de forma direta e explícita, incorporando a EIRL1 como figura autônoma desprovida de estrutura societária. Outros se inclinaram pela introdução de adaptações às normas vigentes em matéria de sociedades, admitindo sua constituição com um único sócio. No último caso, podemos dizer que a concretização do princípio da limitação patrimonial para o empresário unipessoal ocorreu de forma implícita e in-direta.

Assim, no que tange à natureza jurídica dos meios adotados podemos dividi-los em dois grandes grupos:

• a adoção de uma instituição autônoma conhecida como EIRL e

• a adoção da sociedade unipessoal.

Destaque-se, ainda, que, caracterizada como instituição autônoma, pode assumir a condição de patrimônio de afetação ou de uma pessoa jurídica do tipo socieda-de anônima ou sociedade de responsabilidade limitada.

3. Natureza jurídica

A questão relativa à natureza jurídica do instituto é mais um dos difíceis temas que pairam sobre a figura da EIRL. As soluções são variadas e numerosas.

Contudo, antes de analisar quais são as formas que podem servir para dar existência legal ao instituto, é preciso esclarecer que, mais do que a natureza jurídica da EIRL, temos de um modo mais abrangente as formas através das quais a limitação se faz presente: ora como uma EIRL que pode ser uma figura autônoma, ora como uma sociedade, que, no caso, será unipessoal.

Quando a EIRL assume a condição de instituição autônoma, poderá ser considerada como um patrimônio de afetação ou ainda como uma pessoa jurídica. Assumida a condição de sociedade, estaríamos diante das unipessoais.

Nesse sentido, assinala Gonzalo Fi-gueroa: "(...) a doutrina tem discutido extensivamente acerca da natureza jurídica da empresa individual de responsabilidade limitada. As soluções propostas podem agrupar-se em duas classes: as que concebem esta instituição como um patrimônio de afetação distinto do patrimônio original do empresário e que carece de personalidade jurídica, pois ela não é necessária para seu adequado funcionamento e as que exigem que ela conte com dita personalidade jurídica, que estimam indispensável para o mesmo".2

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Em sendo a EIRL reconhecida como instituição autônoma, portanto, nova e diferente dos institutos já existentes, o pressuposto é que estamos diante de uma entidade desprovida de estrutura societária.

Em assim sendo, temos duas situações.

Na primeira, a EIRL como estrutura organizativa empresarial, sem personalidade jurídica, assumiria a feição de patrimônio de afetação, definido como o conjunto de bens e direitos destinados ao cumprimento de uma finalidade. Patrimônio este, distinto do patrimônio originário do empresário titular.

Personificada, a EIRL faria surgir uma nova pessoa jurídica de direito privado distinta da pessoa de seu fundador,3 que também não assume a condição de sociedade empresária.

Na primeira situação, a presunção é da existência de uma pessoa física e de dois patrimônios. No segundo caso, a presunção é da existência de dois sujeitos cada um com seus próprios patrimônios.

Em síntese, a EIRL como patrimônio separado, sem personalidade, assume a condição da universalidade de bens, só podendo ser assim entendida se filiada à teoria finalista do patrimônio.

Sendo reconhecida como ente com individualidade própria dotada de personalidade jurídica, sem a condição de sociedade, seria uma instituição similar a uma fundação de direito civil, com fins lucrativos.

Antes de maiores delongas para compreender a EIRL como patrimônio de afetação é necessário conhecer o patrimônio e suas teorias.

4. Patrimônio de afetação

Convictos da necessidade da adoção do princípio da limitação patrimonial para o exercente individual da atividade econômica, resta-nos analisar qual é a estrutura legal mais adequada para a sua concretização jurídica. Como vimos anteriormente, os meios utilizados para excepcionar a regra geral são variados, e a doutrina tem discutido bastante a natureza que lhe deve ser atribuída.

Nesse sentido vejamos o comentário do professor Gonzalo Figueroa: "As soluções propostas podem agrupar-se em duas grandes classes: as que concebem esta instituição como patrimônio de afetação distinto do patrimônio originário do empresário, e que carece de personalidade jurídica, pois ela não é necessária para seu adequado funcionamento, e as que exigem que ela conte com dita personalidade jurídica, que estimam indispensável para o mesmo".4

Juridicamente, no Brasil, é sobre o conceito de patrimônio destinado a um fim, que acreditamos ser possível realizar-se legalmente a empresa individual de responsabilidade limitada.

No século XIX, as idéias individualistas impediram que a afetação patrimonial tivesse alguma possibilidade de aceitação. A unicidade patrimonial, portanto, era a regra, que tinha muitas de suas razões de ser baseadas nas dificuldades creditícias, posto que a precariedade do sistema de crédito da época e a necessidade de encontrar meios capazes de agregar capital fundamentavam a unidade patrimonial, sem possibilitar situações jurídicas distintas, vez

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que poderiam se apresentar como perigosas.

Contudo, a situação da política credi-tícia assume outros contornos na metade do século XX, tendo a regra da unidade do patrimônio, perdido seu caráter absoluto, uma vez que economicamente a questão do crédito passou a tomar feições que beiravam um problema de oferta e de demanda.

Embora em muitos países tenha sido permitida a utilização das sociedades unipessoais, adstritas ao direito societário, temos fortes argumentos que nos levam a escolher e a reconhecer como mais adequada a afetação patrimonial para a EIRL.

Hoje, a doutrina renega a unidade patrimonial d'outrora, reconhecendo a possibilidade de formas não-personalizadas de patrimônio especial, adotando, portanto, a...

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