Patriotismo constitucional e patriotismo republicano

AutorAntonio Cavalcanti Maia
CargoProfessor de Filosofia do Direito da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e Professor de Filosofia Contemporânea da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica).
Páginas1-28

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Consider, now that 'constitucional patriotism' surely seems to name some sort of motivational disposition. It names, I believe, a disposition of attachment to one's country, specifically in view of a certain spirit sustained by the country's people and their leaders in debating and deciding disagreements of essential constitutional import.

Frank Michelman

Pergunta: Que conselho daria hoje ao Brasil?

Oscar Niemeyer - O patriotismo anda esquecido e precisa ser recuperado. Temos que pensar no Brasil. Temos que pensar na Amazónia. Pensar principalmente no povo, que é pobre. Temos que pensar na América Latina, que está tão ameaçada. Pensar que não podemos ficar à margem da história." (Entrevista ao Jornal do Brasil em 11/12/05, p. B7).

Introdução

O horizonte da vida política contemporânea apresenta sinais preocupantes. A falta de confiança nas possibilidades de enfrentamento dos inúmeros problemas que nos afligem - Page 2 quer seja no campo da justiça distributiva ou no âmbito ecológico - por meio da ação consciente dos atores sociais comprometidos com o funcionamento da democracia, desarma os espíritos que ainda procuram investir suas energias no espaço público. Não só o exaurimento das propostas de transformação social acalentadas pelo pensamento de esquerda contribui para um certo desânimo característico do nosso tempo; mas sobretudo a asselvajada dinâmica do subsistema económico - impulsionado pela lógica autopoiética preocupada exclusivamente com sua auto-reprodução - reduz drasticamente a capacidade da esfera política de influenciar significativamente a dinâmica da vida das sociedades contemporâneas.

O descrédito com as formas tradicionais de representação política, o agigantamento das estruturas burocráticas, a complexidade de um sistema económico interligado em escala global e o crescimento dos comportamentos anómicos - como "a guerrilha civil larvar" presente em várias metrópoles do terceiro mundo - constituem um cenário onde a atuação política parece se resumir ao aspecto defensivo. Defender as garantias jurídicas emancipatórias ainda presentes nos textos constitucionais; defender os interesses imediatos quer seja através de lobbies e ou grupos de interesse; defender as remanescentes reservas naturais apresentam-se como as mais urgentes tarefas. Desta forma, praticamente afasta-se do âmbito da vida política as preocupações com o bem comum.

O texto que ora trago como contribuição para esta edição despertará desconfianças e críticas de muitas vozes - críticas no sentido de uma certa descrença em face das perspectivas que procuro apontar, a partir das referências teóricas que apresento e subscrevo; em especial, na medida em que me perfilho a linhagem dos autores que contemporaneamente apostam nas possibilidades, ainda que modesta, de transformações sociais canalizadas pelos trilhos das estruturas jurídicas contemporâneas1 (em especial as formações sócias que têm sua vida jurídico-político parametrizadas pelos textos legais inspirados pelo constitucionalismo Continental do pós-guerra).

Uma série de autores nas ultimas décadas têm procurado identificar, no bojo da tradição democrática ocidental, elementos capazes de modificar a nossa atual situação que ensejou o diagnóstico tão corrente resumido nos parágrafos anteriores. Salta aos olhos numa primeira constatação presentes nesses esforços teóricos: a aposta no direito e na democracia constitucional contemporânea. Vale dizer, é no front do pensamento de esquerda - ainda Page 3 comprometido com uma agenda política progressista, isto é, redistributiva - que se encontra o reconhecimento da relevância, por sua dimensão transformadora, das instituições jurídico-políticas. Por um lado, a idéia do sistema jurídico canalizar as reivindicações sociais através da expansão dos direitos fundamentais; por outro, a capacidade de dinamizar a vida política com a implementação de mecanismos afinados à idéia de democracia deliberativa, erguem-se como um alento em uma paisagem nivelada pelo pensamento único de matriz economicista.

Neste artigo apresentarei um conjunto de reflexões provenientes de correntes de pensamento que conseguem identificar elementos capazes de vivificar o tecido político das democracias contemporâneas. Preocupados não só com modelos teóricos capazes de descrever as características e tendências da vida política contemporânea, mas também com os âmbitos normativo e motivacional, pensadores como Jürgen Habermas, Maurizio Viroli e Philip Pettit entre outros, oferecem inspiração e subsídios àqueles envolvidos na atividade política e nos seus desdobramentos no domínio jurídico (tanto no âmbito da teoria e ensino, quanto na difícil - e muitas vezes frustrantes - integração com as vicissitudes da vida cotidiana). Convencidos de que a idéia republicana de integração política autoconsciente de uma comunidade de sujeitos livres e iguais ainda é capaz de se adaptar às condições atuais do capitalismo tardio, a constelação dos pensadores republicanos impõe-se como uma referência fundamental nos debates político-jurídicos contemporâneos. Sobretudo por oferecer àqueles que não se satisfazem com o espírito conformista e resignado de perspectivas de análise de forte presença no cenário hodierno - quer seja do front pós-moderno, quer seja do front sistêmico-funcionalista - um possibilitador de ações transformadoras.

I

Durante a década de 90, diversos temas desenvolvidos por Habermas influenciaram o pensamento político-jurídico. Entre eles, o conceito de "patriotismo constitucional" revela-se como um dos mais interessantes devido à valiosa contribuição para inúmeros debates: questões relativas às identidades coletivas, especialmente aqueles referentes às sociedades plurais e complexas do capitalismo tardio; indagações acerca dos fundamentos motivacionais capazes de dinamizar a vida política contemporânea; cogitações acerca da legitimidade das ordens jurídicas contemporâneas e especulações acerca das novas configurações postas em movimento com a integração dos Estados nacionais europeus na União Européia. O presente trabalho tem como ponto de partida a análise do contexto histórico do surgimento da idéia do Verfassungspatriotismus; a seguir examina as transformações operadas neste conceito na década de 90 - no âmbito do debate acerca da União Européia. Posteriormente abordar-se-á Page 4 suas características analíticas, apoiado, em muitos aspectos, na aguda análise da categoria efetuada por Frank Michelman. Em um exercício intelectual mais ousado, algumas considerações serão elaboradas apostando na possibilidade de se integrar a idéia do patriotismo constitucional à cultura político-jurídica brasileira; para tanto será também cotejada a doutrina do patriotismo constitucional com a idéia do patriotismo republicano, desenvolvida por Maurizio Viroli. Um excursus tratará do republicanismo e de seu debate contemporâneo no Brasil. Por fim a conclusão sintetiza a tese básica deste artigo.

* * *

a) O contexto de surgimento

As referências iniciais ao conceito de "patriotismo constitucional" (Verfassungspatriotismus) aparecem nos trabalhos de Habermas da metade da década de 80, em uma de suas intervenções mais incisivas na esfera pública alemã: o Debate dos Historiadores - o Historikerstreit. Naquele momento, inserido "na controvérsia acerca da tentativa de alguns historiadores alemães de negarem a singularidade do Holocausto",2 o herdeiro da Escola de Frankfurt - dirigindo a sua crítica a um grupo de historiadores conservadores liderados por Ernst Nolte (seguido por Hillgruber e Stürmer), que estava procurando trivializar o significado do passado nazista para a história alemã através de uma reinterpretação histórica - utilizou o conceito de "patriotismo constitucional", cunhado pelo cientista político Dolf Sternberger.3

No final da década de setenta, Sternberger sustentou que a Constituição alemã foi capaz de transformar os sentimentos dos cidadãos germânicos, ajudando-os a alcançar um estágio de consciência limpa. Esta "mudança de comportamento" teria ocorrido devido ao respeito e à admiração que a Lei Fundamental conseguia gerar entre a população alemã, contribuindo para o desenvolvimento de um "segundo patriotismo", agora não mais ancorado Page 5 nas tradicionais referências de pertencimento lingüístico, histórico e étnico, mas politicamente fundado na Constituição. Como afirma o politólogo alemão, em texto de 1979:

Todavia hoje sofremos e todavia hoje esperamos. Desde então cresceu no sentimento nacional uma clara consciência da bondade desta lei fundamental. A Constituição saiu da penumbra em que se encontrava ao nascer. Na medida em que ganha vida, ao surgirem atores e ações vigorosas das simples normas, e com isto se vivificam os órgãos que delineavam como devemos utilizar, nós mesmos, as liberdades que ali se garantiam, aprendemos a mover-nos com e dentro deste Estado. Pois bem, nessa medida se formou de maneira imperceptível um segundo patriotismo, que se funda precisamente na Constituição. O sentimento nacional permanece ferido e nós não vivemos em uma Alemanha completa. Mas vivemos na integridade de uma Constituição, em um Estado constitucional completo e este mesmo é uma espécie de pátria.4

Habermas, em seu desenvolvimento desse conceito, explica: "para nós, na República Federal, patriotismo constitucional significa, entre outras coisas, ter orgulho do fato de que fomos capazes de superar permanentemente o fascismo, estabelecendo uma ordem baseada na lei, e ancorando-a em uma cultura política liberal razoável."5 Essa atitude referente à Constituição alemã e ao seu legado deu-se através de um processo histórico que...

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