Microcrédito: Peculiaridades e a democratização do crédito no sistema financeiro nacional

AutorEmanuelle Urbano Maffioletti
Páginas237-262

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1. Introdução

A evolução das práticas comerciais de empréstimo concentrou a realização da operação de crédito nos bancos, que captavam moedas (depósitos) do público e as repassavam, sob a sua responsabilidade, a outrem, mediante empréstimos. Tais instituições passaram a exercer função essencial para o desenvolvimento das ati-vidades econômicas, tornando suas operações cada vez mais complexas, até que, no século XIX, foi necessária a intervenção do Estado para criar formas de controles quantitativos e qualitativos das condições de concessão e garantias do crédito, entre outros aspectos. Na atualidade o acesso ao crédito constitui elemento essencial ao desenvolvimento sustentado da economia, como já afirmava Schumpeter, e que vem sendo reiterado pela literatura desenvolvi-mentista mais recente, como, por exemplo, Amartya Sen.

Em função de tudo isto, a disciplina do crédito é complexa e altamente institucionalizada, influenciando, ainda, a disciplina de outros institutos econômicos, como os da oferta e procura de bens, da poupança, de depósitos, da moeda, da inflação, dos juros e da distribuição de renda.

No Brasil o crédito e a moeda são controlados pelo Sistema Financeiro Na-cional/SFN, por força do artigo 192 da CF e da Lei 4.595/1964. Com essa base, o Conselho Monetário Nacional/CMN e o Banco Central do Brasil/BACEN executam as diretrizes de programas públicos de crédito, estabelecem a disciplina do crédito e buscam manter a estabilidade monetária com vistas ao desenvolvimento.

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Apesar dessa previsão legal e de o SFN ser muito desenvolvido, sofisticado e complexo, o sistema tradicional de crédito até pouco tempo caminhava num sentido de restrição a um público especialíssimo.

Recentemente essa deficiência no sistema de crédito foi posta em foco, pois a incompatibilidade entre os requisitos de acesso ao crédito e as características da sociedade brasileira privilegiava apenas uma menor parcela dos agentes produtivos. Diante de tal realidade, a democratização do crédito e de outros serviços financeiros tornou-se uma questão nuclear para a efe-tividade do desenvolvimento econômico brasileiro, uma vez que existe hoje a compreensão indispensável da sustentabilidade do modelo de desenvolvimento de médio e longo prazos.

Nesse sentido, seguindo uma tendência internacional, o microcrédito começou a ser promovido e divulgado no Brasil, inicialmente por algumas organizações não-governamentais/ONGs e depois, com o apoio regulamentar, por outras instituições financeiras. Foram adotadas políticas públicas e encaminhadas regulamentações com o objetivo de favorecer o oferecimento do microcrédito no Brasil, modalidade de crédito com metodologia diferenciada, cujo público-alvo é composto justamente por agentes produtivos até então excluídos do SFN.

Em virtude disso, o microcrédito surge como uma alternativa de acesso ao crédito às unidades produtivas que se concentram no campo da informalidade, com metodologia compatível com as instituições prestamistas (instituições ofertantes), conquanto é desenvolvida com base em garantias diretas e indiretas que atribuam segurança quanto à adimplência.

Hoje, já verificada alguma abertura do Sistema Financeiro aos microempre-endedores, a questão que se põe é sobre a adequação do institucional e de sua relevância para a democratização do crédito, com o objetivo de atingir o desenvolvimento econômico e social.

Considerando a relevância dessa temática e a oportunidade de estudo jurídico, o presente trabalho tem por objeto analisar aspectos jurídicos relacionados ao microcrédito e as medidas institucionais adotadas com o fim de se estabelecer um processo de democratização do crédito com vistas ao desenvolvimento econômico e social sustentável.

O tema será desenvolvido em três capítulos. O primeiro é dedicado ao sistema tradicional de crédito e aos conceitos básicos sobre o crédito, microcrédito e metodologia; o segundo tratará sobre a institucionalização do crédito, os fundamentos do microcrédito e a evolução da regulamentação no Brasil; e o terceiro será reservado ao estudo do apoio institucional, com vistas à consolidação e ao aprimora-mento do microcrédito no Brasil, a fim de contribuir à sua democratização e ao desenvolvimento econômico e social.

2. Noções introdutórias do sistema de crédito e delineamentos jurídicos do microcrédito

O vocábulo "crédito" tem origem no Latim (credere), traduzido nos vocábulos "acreditar", "confiar". Paolo Greco1 explica que o crédito tem várias acepções, entre elas a moral, que está presente em todas as relações de crédito, tendo em vista que o crédito vale: boa reputação, favorável consideração na qual alguém é reconhecido pela sua qualidade moral, pela sua habilidade profissional ou pela sua posição patrimonial, ou, mais ainda, pelo conjunto desses fatores. Envolve, então, relações jurídicas nas quais se destacam a fidúcia, honestidade, boa-fé, uma favorável consideração desfrutada por determinada pessoa na coletividade ou regularidade do cumprimento de determinadas obrigações.

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Demais disso, o crédito diz respeito ao ato de emprestar, de transferir a propriedade de um bem, ou à disposição deste para a transferência da propriedade em um momento sucessivo, considerando-se a devolução deste bem ao proprietário original após um termo.2

Mais: o crédito envolve a transferência da propriedade do bem.3 O proprietário do bem deixa de ter sua posse e a transmite para outrem, que se compromete a devolvê-la posteriormente em determinado termo. No caso de o objeto do empréstimo ser a moeda, há duas situações: primeiro, a moeda é transferida de um titular (proprietário) para uma instituição financeira (instituição intermediária); a instituição intermediária, por sua vez, registra a entrada dessas moedas e as transfere para um terceiro a crédito (devedor final), que adquire bens de sua necessidade; e assim por diante. Os devedores (instituição intermediária e devedor final) assumem a obrigação de devolver o valor representativo das moedas (bem fungível) no termo pactuado.

Os caracteres envolvidos no negócio jurídico de crédito, dentre os quais se destacam o termo (prazo para recebimento do crédito) e a circulação de riquezas (há transferência da propriedade de bens), fazem com que seu estudo envolva noções interdisciplinares, especialmente localizadas nas ciências da Economia e do Direito.

Para o Direito são conceitos relevantes ao desenvolvimento desse estudo: a forma (os contornos) que se ajusta para a transferência da propriedade e devolução do bem objeto de empréstimo e as garantias de retorno desse bem.

O retorno do crédito (moedas), portanto, aparece como um relevante ponto de proteção jurídica e de particular interesse dos credores, o que fundamentaria a premissa de as instituições intermediárias só fornecerem crédito àqueles que disponham de garantias suficientes quanto à devolução das moedas emprestadas.

Mas, além dessa visão privatista do negócio jurídico de crédito, há valores econômicos e sociais que transcendem os efeitos particulares dessa relação. O crédito envolve a circulação de riquezas, fornecendo aos empresários o poder de compra antecipado de um bem essencial para contribuir e incrementar sua atividade econômica e produtiva. O fechamento deste ciclo permite o crescimento da economia, aumenta o potencial de produção dos empresários, cria mais condições de emprego, de concorrência, eficiência, e aumenta as variáveis de bens de consumo, permitindo o desenvolvimento econômico, como já afirmava Schumpeter.4

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Essa associação do crédito como instrumento do desenvolvimento econômico persiste com o passar dos tempos. Aliás, atualmente concebe-se o direito ao crédito associado ao princípio da dignidade da pessoa humana, assegurando-lhe a liberdade. Isto porque o tomador pode negociar com o vendedor (distribuidor de bens de capital e/ou consumo) a aquisição dos bens necessários, exercer suas escolhas sociais com mais facilidade e adquirir a propriedade de bens no momento que julgar oportuno, além de gerar sustento próprio e para outras famílias.5

Tendo em vista os fundamentos da teoria jurídica do crédito, mais a função de contribuir ao desenvolvimento econômico sustentado, o Estado intervém nessa ativi-dade econômica. Assim, há de atuar com o intuito de harmonizar todos os interesses e valores, protegendo o interesse privado do credor quanto ao retorno do bem emprestado e evidenciando a função social do crédito, caracterizando o crédito como instituto altamente institucionalizado no Brasil.

2. 1 Caracterização do sistema tradicional de crédito

No Brasil o sistema de crédito é historicamente marcado como um sistema fechado. Ou seja, com o acesso ao crédito restrito a um público especialíssimo, dis-ponibilizado mediante a cobrança de altos encargos e concedido após análise criteriosa dos riscos da operação, das informações do devedor e das garantias apresentadas, sendo estas prioritariamente representadas na forma de bens.

Durante muito tempo as instituições financeiras agiram com base nas oscilações econômicas e nas tendências do mercado interno, aproveitando os cenários econômicos mais favoráveis para aumentar a oferta do empréstimo, quando...

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