A pedagogia da paz: a contribuição de Jean Monnet para a construção da União Europeia

AutorProf.ª Dr.ª Karine de Souza Silva
Páginas9-18

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1 Considerações Iniciais

Jean Monnet foi uma das figuras mais célebres do século XX.12 Foi o estrategista mais influente que transitou pelos bastidores do poder no pós-Segunda Guerra e sua ação concreta pavimentou a via que desembocou na construção da União Europeia.

A Europa era o epicentro de uma crise sem proporções, ocasionada pela grande Guerra que devastou a economia regional, determinou o fracasso dos métodos da diplomacia tradicional na Page 10 resolução de controvérsias e impôs um ambiente de dor e destruição nos territórios afetados. A autoestima, a esperança e o espírito de solidariedade dos europeus davam sinais de fragilidade, enquanto os muros físicos e imaginários levantados pela guerra fria sinalizavam o perigo iminente da eclosão de outro conflito mundial.

Diante desse cenário catastrófico é que Jean Monnet demonstra seu determinismo em propagar a ideia de integração como meio de assegurar a paz e de reerguer política e economicamente o velho continente. O grande entusiasta da Europa unida encontrou uma fórmula de desmaterializar a rivalidade franco-alemã através de um método capaz de realizar, paulatinamente, o mercado único.

Foi de autoria de Jean Monnet o texto da Declaração Schuman de 09 de maio de 1950, que conclamava os Estados a fundarem uma Organização Internacional supranacional para superarem as perigosas rivalidades que, fatalmente, conduziriam a um novo embate bélico. Nesse dia, nascia formalmente a União Europeia e o nome de Monnet passava a ocupar um lugar de destaque nas páginas da História por sua evidente atuação em prol da unificação dos povos em torno de uma única bandeira.

O objetivo deste artigo é apresentar o protagonismo de Jean Monnet no processo de surgimento e consolidação da União Europeia (UE). Dessa forma, o trabalho primeiramente expõe o empenho do projetista francês em construir setorialmente a união através de um método inovador e em vencer as adversidades encontradas para atingir seus objetivos. Em seguida, são explicitadas as principais teses de Jean Monnet que sustentaram a edificação das estruturas comunitárias. Por fim, explanará a evolução do bloco e sua consagração como o modelo de integração mais complexo e ousado do mundo.

2 Jean Monnet e o impulso para criação da integração europeia

Jean Marie Gabriel Monnet3 foi um dos mais hábeis projetistas que a humanidade já conheceu.

Monnet trabalhou entusiasticamente pela reconstrução e reconciliação da velha Europa vitimizada pelas chagas do ódio e do rancor4. Não pertencia às linhagens detentoras de poderes políticos e econômicos na França e nunca foi investido em cargos políticos5. Mesmo distante das honrarias típicas do poder e dos títulos distintivos, exerceu, como poucos, um importante grau de influência nas decisões de homens públicos, valendo-se da sua pedagogia da paz de forte inf uência kantiana6. Foi uma figura que trabalhou nos bastidores7 e cimentou as bases da integração europeia através da neutralização da rivalidade franco-alemã. Enquanto Alcide de Gaspari, Konrad Adenauer e Robert Schuman foram os pais da União Europeia, sem dúvida Monnet foi o mentor.

Monnet foi o verdadeiro arquiteto da unidade europeia. O meio internacional o conhecia como o "inspirador" da nova Europa, apelido que lhe foi dado pelo general Charles de Gaulle. O reconhecimento da sua importância lhe rendeu outras alcunhas como: "visionário pragmático", de autoria de Jacques Delors; e "revolucionário pacífico", como era chamado por François Fontaine8.

Jean Monnet foi uma figura ativa na construção da Sociedade das Nações, tendo sido, por isso, nomeado como Secretário-Geral Adjunto, quando da fundação da Organização Internacional em 1919. Na oportunidade, começa a elevar a primeiro plano a necessidade de diálogo pacífico entre os povos do mundo e a de reforçar os princípios de cooperação entre os Estados. A Segunda Guerra Mundial lhe conferiu novamente um papel de destaque internacional, quando exerceu a função de presidente do Comitê de Coordenação Franco-Britânico, cujo encargo era o de negociar o suprimento de armas dos aliados.

Mas foi o fim da Segunda Guerra que lhe outorgou protagonismo na cena europeia. Monnet foi Comissário do Plano de Modernização e Equipamento da França, que objetivava a reconstrução e recuperação econômica do país no contexto do Plano Marshall. No exercício dessa missão, ressuscitou9 e reelaborou importantes teses sobre a integração regional que serviram de impulso à criação da União Europeia.

O "visionário pragmático" se preocupava contundentemente com a situação caótica da Europa10, que apresentava um cenário de notada devastação política e econômica, com altos índices de inflação, insuficiência no abastecimento agrícola e grandes dificuldades para atrair recursos estrangeiros necessários à reestruturação dos parques nacionais. Do mesmo modo, assaltava-lhe o temor de que o capital norte-americano injetado pelo Plano Marshall deixasse as potências europeias eternamente dependentes e apáticas. O único meio de escapar dessa armadilha era através da promoção de um esforço comum dos Estados que garantisse, coletivamente, um futuro de paz e estabilidade econômica. Page 11

A nova divisão do Mundo entre o Leste capitalista e o Oeste socialista alimentava as suspeitas da potencialização de um novo conflito com efeitos ainda mais cruéis. Nesse contexto de crise, a Alemanha figurava como a porta divisória que separava dois mundos11 que, inevitavelmente, iriam confrontar-se12. Monnet observava que "o diálogo leste-oeste não conhecia outra regra a não ser a força". No seu entender, a guerra fria constituiria "a primeira fase da guerra verdadeira".13 Por essa razão era urgente formular uma solução concreta pacificadora que transformasse o curso dos acontecimentos, que alterasse estrategicamente as condições dadas14. Para tal, "a Alemanha não seria a causa, mas o que estaria em jogo. É preciso que deixe de ser o objeto de disputa e que, ao contrário, se torne um elo de ligação"15. Para chegar a esse objetivo, era imperativo "mudar a mente dos homens", o que significava afastar tanto o temor alemão de ser novamente vítima de humilhações, como dissipar o medo francês do reerguimento incontrolável da Alemanha. Essa era a chave para a união da Europa.

A situação era extremamente delicada, pois a reestruturação alemã, por um lado, serviria de barreira de contenção contra as pretensões expansionistas da ex-União Soviética e, por outro lado, poderia traduzir-se numa ameaça de um ressurgimento titânico do poderio bélico-industrial germânico que lhe possibilitasse ultrapassar as fronteiras alheias.

Pensando nisso, o "inspirador" propunha "uma solução que colocaria a indústria francesa na mesma base de partida da indústria alemã, e ao mesmo tempo liberando esta das discriminações surgidas da derrota, restabeleceria as condições econômicas e políticas de um entendimento indispensável à Europa. Bem mais, poderia ser o próprio fermento da unidade europeia."16

Para tal, era o momento de reunir o que a ação dos homens separou. A reintegração da região do Sarre e Ruhr nos mesmos moldes que a natureza havia irmanado - e a história se ocupou em apartar - era a única saída para a pacificação. Assim, poder-se-ia colocar os recursos naturais nela envolvidos a serviço da paz e não da guerra. Somente assim afastar-se-iam dos Estados as potencialidades da indústria bélica. "A riqueza conjunta era em primeiro lugar a do carvão e do aço cujas bacias naturais inscritas em um triângulo geográfico que as fronteiras cortavam artificialmente eram repartidas de maneira desigual, mas complementar, pela França e pela Alemanha. Essas fronteiras casuais tinham se tornado, na era industrial, cujo surgimento coincidiu com a das doutrinas nacionais, obstáculos às trocas e depois linhas de confrontação. Nenhum dos dois povos se sentiu mais seguro porque não possuía sozinho todo o recurso, isto é, todo o território. A rivalidade era decidida pela guerra que só resolvia o problema por certo tempo - o tempo de preparar a desforra. Ora, o carvão e o aço eram ao mesmo tempo a chave da potência econômica e a do arsenal onde se forjavam as armas da guerra. Esse duplo poder lhes dava então uma enorme significação simbólica que esquecemos, semelhante a que se reveste a energia nuclear hoje em dia. Fundi-los acima das fronteiras seria retirar-lhes seu prestígio maléfico e os transformaria, ao contrário, em garantia da paz".17

A proposta consistia em retirar das mãos dos Estados a capacidade de gestão dos recursos energéticos, o carvão e o aço, matérias-primas que moviam a indústria da guerra. A produção de tais recursos energéticos deveria ser controlada por uma "Autoridade Internacional aberta à participação dos outros países da Europa. Esta (autoridade) teria a tarefa de unificar as condições de base da produção e de permitir assim a extensão gradual aos demais domínios de uma cooperação efetiva para fins pacíficos".18 Ou seja, a intenção era a de integrar os Estados através de uma Organização Internacional (OI) setorial que tinha por escopo a administração de produção de carvão e aço dos Estados signatários.

A semente já estava lançada, faltava dar-lhe um corpo. Com o auxílio de seus colabores diretos Étienne Hirsch, Pierre Uri e Paul Reuter, Monnet começa a desenhar o plano francês de criação da Organização Internacional responsável por gerir o conjunto da produção franco-alemã de aço e carvão. A proposta era revolucionária e Monnet era consciente disto. Tal proposição, que seguia uma metodologia inovadora, foi imediatamente abraçada pelo Ministro de Negócios Estrangeiros, Robert Schuman, que, por sua vez, serviu de interlocutor junto ao governo Charles de Gaulle. Este, após convencido de que...

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