Pegas and Pernambuco: notes on the ius commune and the colonial space/Pegas e Pernambuco: notas sobre o direito comum e o espaco colonial.

AutorCabral, Gustavo Cesar Machado

Introducao

Este trabalho tem como objetivo precipuo discutir a relevancia da Allegacam de direito por parte dos senhores condes do Vimiozo sobre a sucessam da capitania de Pernambuco (1671) para a Historia do Direito Colonial no Brasil. Trata-se de obra de autoria de um dos mais importantes juristas portugueses do seculo XVII, Manuel Alvares Pegas (1635-1696), apresentada, originalmente, como a peticao inicial de um processo movido pelos herdeiros dos donatarios da Capitania de Pernambuco contra a Coroa Portuguesa e em razao da incorporacao do seu senhorio apos a vitoria e expulsao dos holandeses no mesmo territorio.

O texto de Pegas, ate hoje nao estudado suficientemente, possibilita lancar novos olhares sobre o fenomeno do direito colonial brasileiro. E justamente esta a pretensao: pensar o direito colonial, que tem natureza de direito particular, e as suas relacoes com o direito comum geral e do reino. Trata-se de um raro exemplo, para o caso da America Portuguesa, de fonte em que fica muito claro o verdadeiro entrelacamento em que muitas vezes se encontravam, no Antigo Regime, elementos como literatura juridica e processos judiciais. A convivencia, dentro de um mesmo espaco, de diversas ordens juridicas faz com que a existencia desse entrelacamento fique clara, dai porque se torna relevante essa funcao reconstrutiva do espaco, determinando-se, assim, o espaco de referencia a partir do problema juridico (1). Como se vera adiante, o fato de se ter determinado um espaco de referencia nao significara uma interpretacao isolacionista. Muito pelo contrario. Ha uma constante interface entre esses espacos que simplesmente impede que ordens gerais e particulares sejam vistas como se fossem integralmente apartadas.

Para os objetivos deste texto, lanca-se mao de uma discussao introdutoria sobre o que consistiria esse direito colonial e de uma rapida explicacao sobre a situacao da Capitania de Pernambuco no seculo XVII antes de partir para uma analise mais aprofundada das allegationes enquanto o genero da literatura juridica do periodo e, a seguir, da propria Allegacam. Neste ponto, serao reconstruidos os argumentos apresentados pelo autor e a forma como essa argumentacao se estruturou, em especial no que diz respeito ao uso de argumentos de autoridade como essenciais para a formacao da conviccao do leitor.

  1. Direito colonial brasileiro: problemas introdutorios

    A sistematica do ius commune foi caracterizada pela convivencia entre ordens gerais e particulares em um mesmo espaco juridico. Numa perspectiva continental, o ius commune, formado a partir da influencia do direito romano e do direito canonico, tinha carater geral, ao passo que os direitos patrios eram direitos particulares. Reduzindo a analise aos limites do Estado Nacional, havia tambem normas de cunho geral--o que, nas monarquias, era simbolizado pelo chamado direito regio, o ius regnum de que fala Italo Birocchi (2)--numa convivencia com normas particulares.

    E partindo desse pressuposto que se analisa o direito colonial brasileiro, que, se pensado como uma totalidade, pode ser encarado como um direito particular diante do direito comum do reino, nos termos empregaos pelos juristas do periodo. Uma dificuldade se impoe desde logo: falar em um direito colonial brasileiro como uma categoria geral valida como parametro amplo, tal qual ocorreu na America Hispanica, talvez consista em uma impropriedade. Se o espaco juridico da America Hispanica teve normas gerais escritas, as quais foram reunidas na Recopilacion de Leyes de India (1680) e funcionaram ao lado das muitas normas particulares, a Coroa Portuguesa elaborou poucas normas gerais para a sua parte da America e nao se preocupou em compila- las. Isso dificulta que se fale em um direito colonial brasileiro como um direito geral.

    Inexistindo um corpo organizado de leis proprias para a America e partindo do pressuposto de que nas leis seriam encontradas, principalmente, as fontes de um direito colonial, nao e de se estranhar a duvida sobre a existencia ou nao de um direito proprio para a America Portuguesa. Antonio Manuel Hespanha construiu argumentacao defendendo a existencia de um direito colonial em virtude da "capacidade local de preencher espacos juridicos de abertura ou indeterminacao existentes na propria estrutura do direito comum" (3) e reconhecendo a importancia de outras fontes do direito bem mais utilizadas nesse contexto do que as leis, a exemplo dos costumes e das decisoes judiciais (4). Trata-se de perspectiva que se aproxima do que defendeu Javier Barrientos Grandon para o estudo do direito indiano, situando-o dentro do ius commune e analisando-o a partir das relacoes entre direito comum e direitos particulares (5).

    Em linhas gerais, esta e a perspectiva que se adota para este trabalho: uma visao de que, ao se falar em um direito colonial brasileiro, refere-se a um conjunto de fontes de direitos particulares, as quais se manifestavam por meio de fontes das mais diversas naturezas (leis, costumes, normas expedidas por autoridades administrativas, decisoes judiciais, etc) e que nao podem ser encaradas com pretensao de sistematicidade. O casuismo do Direito do periodo, descrito, no seculo XVII, por Bermudez de Pedraza (6), se manifestava pela necessidade de se preencherem as lacunas que constantemente surgiam nas esferas locais e de se resolverem conflitos. As disposicoes gerais valeriam e deveriam ser aplicadas apenas se nao houvesse disposicao contraria, nos termos da expressao "sem embargo de decisao ao contrario", por meio da qual Arno Wehling descreveu a ampla existencia de normas especiais (7), mas tambem tambem disposicoes locais especificas. Assim, havendo norma especial de natureza local, as disposicoes gerais oriundas da Corte costumavam ficar sem efeito.

    Em meio a pluralidade de fontes, algumas perspectivas podem ser uteis para compreender o fenomeno juridico na America Portuguesa, notadamente aquelas que optem por caminhos de reconstrucoes localizadas (8). Ainda que falte um trabalho sistematico sobre o conceito de fonte do direito na America Portuguesa, o qual deve considerar essa pluralidade de fontes, normas e ordens juridicas nos diversos espacos que compoem esse espectro, ha importante historiografia que procura lidar com esses problemas seja a partir, por exemplo, de temas especificos (inquisicao, bruxaria ou sesmarias), de um tipo de fonte (processos judiciais), de uma instituicao determinada (um tribunal de relecao) ou de grupo de atores (ouvidores de capitania hereditaria).

    Seguindo essa linha, este texto tera como foco nao um direito puramente local, mas a aplicacao de normas portuguesas pelo mais alto tribunal com funcoes eminentemente jurisdicionais a realidade do Brasil do seculo XVII no que se refere ao sistema de capitanias hereditarias, o qual consistia em um dos fundamentos elementares da politica para a America. Verificar a forma como se construiu a saida juridica para a sucessao daquele que, a epoca, era um dos mais importantes senhorios na America Portuguesa parece ser um caminho para entender o fenomeno juridico colonial, em especial no que se refere a fluidez entre os elementos tipicos do direito comum e os espacos juridicos dotados de ordens particulares. Em verdade, essa fluidez so comprova uma integracao desses espacos ao direito comum, mesmo que constituissem ordens juridicas proprias.

  2. O espaco: a capitania de Pernambuco no seculo XVII

    Para compreender o caso que motivou a elaboracao da Allegacam de Pegas aqui estudada, e necessario entender, ainda que preeliminarmente, a situacao da Capitania de Pernambuco no seculo XVII.

    Doada a Duarte Coelho Pereira (ca. 1485-1554) pelo rei D. Joao Ill, em 1534, Pernambuco foi uma das mais prosperas capitanias hereditarias da America Portuguesa. A mudanca do donatario para as terras recebidas, juntamente com algumas centenas de portugueses, contribuiu para a instalacao de um assentamento populacional que, logo no seculo XVI, deu origem primeiramente a vila de Olinda, cuj'o foral data de 1537, e, posteriormente, ao Recife, dois dos mais importantes centros urbanos coloniais (9).

    A construcao de dezenas de engenhos de acucar, principal negocio desenvolvido na Capitania, foi essencial para o seu sucesso, muitos dos quais financiados por agentes do mercado financeiro das Provincias Unidas. Os holandeses foram os principais parceiros e, portanto, essenciais para o desenvolvimento do negocio do acucar em Pernambuco. Com a politica de expansao das Provincia Unidas, capitaneada especialmente pela Companhia das indias Ocidentais e como uma das consequencias das tensoes entre a Coroa Espanhola, que desde 1580 esteve em uniao pessoal com a Portuguesa, e as Provincias Unidas. Em 1630, os holandeses ocuparam Olinda e Recife e se instalaram na regiao ate que, somente em 1654, as forcas portugueses (10) (ou Iuso-brasileiras, se se considerar que econseguiram reocupar em definitivo a area (11).

    Com a reocupacao, a qual ocorreu a partir da uniao entre as forcas militares portuguesas e os moradores da regiao, a Coroa Portuguesa decidiu nomear um governador para a Capitania, o que simbolizou, na pratica, o final do regime senhorial em Pernambuco. O ultimo donatario foi Duarte de Albuquerque Coelho, o marques de Basto, filho de Jorge de Albuquerque Coelho, neto de Duarte Coelho Pereira e irmao de Matias de Albuquerque, conde de Algrete e governador de Pernambuco ao tempo da conquista holandesa, que escreveu uma obra (12) relatando a guerra de reconqusita apos o esbulho do seu senhorio pelos holandeses (13). Seus sucessores nao se conformaram com a incorporacao da Capitania, o que levou D. Miguel de Portugal (1631-1681), o 6q Conde de Vimioso, casado com Maria Margarida de Castro de Albuquerque, filha de Duarte de Albuquerque Coelho, a iniciar um processo contra a Coroa em 1670.

    A peticao inicial deste processo foi assinada por Manuel Alvares Pegas, que a publicou sob a forma de alegacao no ano seguinte. O final dessa contenda...

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