Pela minha família, por deus e pelo fim da corrupção': notas sobre o patrimonialismo na política brasileira contemporânea e a falência do estado democrático de direito

AutorMaiquel Angelo Dezordi Wermuth - Joice Graciele Nielsson
CargoDoutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS (2014). Mestre em Direito pela UNISINOS (2010) - Doutoranda em Direito pela UNISINOS. Mestre em Direito pela UNIJUÍ. Professora do Curso de Direito da UNIJU
Páginas46-79
Rev. direitos fundam. democ., v. 22, n. 1, p. 46-79, jan./abr. 2017.
ISSN 1982-0496
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
“PELA MINHA FAMÍLIA, POR DEUS E PELO FIM DA CORRUPÇÃO”
1: NOTAS
SOBRE O PATRIMONIALISMO NA POLÍTICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
E A FALÊNCIA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
“FOR MY FAMILY, FOR GOD AND THE END OF CORRUPTION”: NOTES ON
PATRIMONIALISM IN CONTEMPORARY BRAZILIAN POLITICS AND THE FAILURE
OF THE DEMOCRATIC STATE OF LAW
Maiquel Angelo Dezordi Wermuth
Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS (2014).
Mestre em Direito pela UNISINOS (2010). Pós-graduado em Direito Penal e Direito
Processual Penal pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul - UNIJUÍ (2008). Professor dos Cursos de Graduação em Direito da UNIJUÍ e da
UNISINOS.
Joice Graciele Nielsson
Doutoranda em Direito pela UNISINOS. Mestre em Direito pela UNIJUÍ. Professora do
Curso de Direito da UNIJUÍ.
Resumo
O artigo perspectiva o cenário político brasileiro contemporâneo, no
qual se inscreve o processo de impeachment da Presidenta da
República Dilma Rousseff. Objetiva-se ilustrar que, nesta conjuntura,
evidencia-se uma disputa politico-ideológica entre o campo
republicano daqueles setores que acreditam nas práticas do Estado
Democrático de Direito e o campo das práticas patrimonialistas,
clientelistas e corruptas de apropriação do espaço público em nome
de interesses privados. O método empregado na investigação é o
fenomenológico hermenêutico, marcado pela invasão da filosofia pela
linguagem a partir de uma pós-metafísica de reinclusão da faticidade
que passa a atravessar o esquema sujeito-objeto, estabelecendo uma
circularidade na compreensão. Como resultado da investigação,
procura-se demonstrar que as elites brasileiras tem reagido ao
avanço da institucionalidade democrática, do republicanismo no trato
da coisa pública e da consolidação do Estado de Direito, mediante a
perpetuação de um processo de impeachment que se dá às custas
da destruição da legalidade democrática e do Estado de Direito.
1 O título do presente artigo faz alusão a uma justificativa amplamente empregada pelos deputados
federais brasileiros na votação pela abertura do processo de impeachment da Presidenta Dilma
Roussef, em 17 de abril de 2016.
MAIQUEL ANGELO DEZORDI WERMUTH / JOICE GRACIELE NIELSSON
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Rev. direitos fundam. democ., v. 22, n. 1, p. 46-79, jan./abr. 2017.
Palavras-chave:. Estado Democrático de Direito. Impeachment.
Patrimonialismo
Abstract
This paper perspective the contemporary Brazilian political scene,
which is inscribed the impeachment of the President of the Republic
Dilma Rousseff. The objective is to illustrate that, at this juncture,
evidence is a political-ideological dispute between the Republican field
- those sectors that believe in the practice of the Democratic State of
Law - and the field of patrimonial practices, clientelistic and corrupt
appropriation of public space behalf of private interests. The method
used in research is the hermeneutic phenomenological, marked by the
invasion of philosophy by language from a reinclusion
postmetaphysical of facticity passing through the subject-object
scheme, establishing a circularity in understanding. As a result of
research, seeks to demonstrate that the Brazilian elites have reacted
to the advancement of democratic institutions of republicanism in
dealing with public affairs and the rule of law consolidation by the
perpetuation of an impeachment process that is at the expense of
destruction of democratic legality and the rule of law.
Key-words: Democratic State of Law. Impeachment. Patrimonialism.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O cenário político-jurídico brasileiro atual apresenta uma nítida luta político-
ideológica, já descrita por João Ricardo Dornelles (2016), entre dois grandes campos:
um campo que pode ser descrito como republicano, ou seja, que parte da
compreensão da República como “coisa pública” e da questão política como uma
questão laica, orientada por um conjunto de regras aceitas pela sociedade e que, por
isso, fazem do espaço público o espaço da política e, de outro lado, um campo
marcado por práticas conservadoras e antidemocráticas que se utilizam do aparato da
democracia representativa para promover uma verdadeira confusão entre os interesses
privados e o interesse público. No presente artigo, procura-se evidenciar essa
“confusão” entre interesse público e interesses privados a partir da análise das
expressões utilizadas por muitos deputados federais no momento de “justificar” o voto
pelo prosseguimento, no Senado, do processo de impeachment da presidenta Dilma
Rousseff, na votação ocorrida na Câmara em 17 de abril de 2016.
A utilização, na votação, por muitos deputados, das expressões “deus” e “minha
família” evidencia que, no Brasil, conforme o presente artigo buscará demonstrar, o
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segundo campo identificado por Dornelles aquele tido como arcaico, conservador,
antidemocrático, pautado por práticas antirrepublicanas, patrimonialistas e clientelistas
, sempre foi preponderante. Apoiadas em tais práticas, as elites usurparam, se
apropriaram do poder e das benesses proporcionadas pela coisa pública, sob um custo
altíssimo: uma herança social de cidadania e de inclusão social fragilíssima, e a
existência de amplos contingentes excluídos, empobrecidos, vulneráveis e que não
recebem os benefícios políticos, econômicos e sociais da sociedade moderna,
relegados à condição de “cidadãos de segunda – ou terceira classe”.
Preponderante durante toda a história brasileira, tal campo sofreu um abalo a
partir do advento da Constituição Federal de 1988 e da instituição do Estado
Democrático de Direito. A existência de uma Constituição Social, com o intento de
subordinar o exercício do poder ao império da lei, deu fôlego ao campo republicano,
aquele que, segundo a descrição de Dornelles (2016), segue as chamadas regras do
jogo e coloca o espaço público como um espaço da política, da polis, da cidadania,
dos direitos. Este processo se fortaleceu ainda mais a partir da eleição de Luiz Inácio
Lula da Silva, em 2002, para a Presidência do Brasil, pelo Partido dos Trabalhadores.
Graças à legalidade democrática instituída a partir de 1988, no bojo de um Estado de
Direito, as elites deixaram de figurar na representatividade maior do poder político
nacional
2, o que trouxe consequências em dois campos fundamentais: a edição de
políticas sociais que tinham o intuito de reverter o cenário de exclusão social
historicamente constituído no Brasil; e o fortalecimento de instituições e práticas
republicanas, que visavam ao desmonte das estruturas patrimonialistas, clientelistas e
corruptas que sustentaram as práticas políticas brasileiras durante séculos.
Por outro lado, a ascensão de um partido de esquerda ao poder, no país,
despertou aquilo a que Rancière (2014, p. 63) identifica como o germen do “ódio à
democracia”: ela não se assenta sobre um poder delegado por deus e tampouco em
um poder que se estrutura na tradição, já que a democracia, na sua ótica, não é um
tipo de constituição nem uma forma de sociedade, representando, “simplesmente o
poder próprio daqueles que não têm mais título para governar do que para ser
governados.”
Essa disputa, como os acontecimentos atuais tem demonstrado, está longe de
se encerrar. Pelo contrário: as hegemonias conservadoras tem se mostrado
2 Tal mudança se restringiu ao Poder Executivo, dado que o Poder Legislativo continuou sob o domínio
dos mesmos grupos e dinastias políticas.

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