Penhora sobre Salários, Proventos da Aposentadoria e Poupança: O Princípio da Legalidade e a Utilidade da Jurisdição

AutorTereza Aparecida Asta Gemignani
CargoJuíza do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas. Doutora em Direito do Trabalho - nível de pós-graduação (USP - Universidade de São Paulo)
Páginas20-29

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"Não se escapou, aqui, de uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que não se inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo"

Luís Roberto Barroso

1. Introdução

Nosso direito sempre reconheceu a relevância do salário, tanto assim que lhe conferiu a garantia da impenhorabilidade, quando confrontado com outro crédito de natureza diversa da alimentícia.

A questão ora enfrentada se reveste de maior complexidade, pois pretende analisar se esta garantia subsiste de forma absoluta, mesmo quando se trata de proceder ao pagamento de outro salário, verba que ostenta a mesma natureza. É o caso concreto, que vem se multiplicando nas cortes trabalhistas, do empregador que, depois de desfazer seu negócio, ou de encerrar suas atividades empresariais, passa a trabalhar como empregado ou se aposenta. Entretanto, fica devendo verbas salariais ao seu ex-empregado, que bate às portas da justiça para executar a dívida e receber o que é seu.

Neste caso, poderíamos sustentar que remanesce a impenhorabilidade absoluta e integral de um salário (do ex-empregador), conferindo-lhe total garantia, ao mesmo tempo em que todas as garantias são negadas ao outro salário (do ex-empregado).

2. O direito do avesso

Um dos pilares de sustentação do direito do trabalho está calcado no conceito de que se o empregador detém o poder diretivo do empreendimento, deve exercê-lo em sua integralidade não só no que se refere aos bônus, mas também quanto aos ônus, não podendo transferir o encargo respectivo para o empregado. Se em alguns países, principalmente europeus, a ideia de gestão compartilhada é considerada viável, no Brasil isso não acontece. Todo empregador é muito cioso de seu poder exclusivo de dirigir a atividade empresarial e, via de regra, não aceita que haja qualquer participação dos empregados. Por esse motivo, o direito do trabalho também deve ser vigilante para impedir que sejam imputados aos empregados os efeitos decorrentes do insucesso patronal nos negócios.

Num ambiente de conjuntura econômica instável, marcada

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por um índice considerável de mortalidade das pequenas e médias empresas, o que preocupa é a tentativa de jogar nas costas do empregado os efeitos econômicos da má condução empresarial do empregador.

Não é incomum a situação daquele que abriu um negócio, se deu mal e despediu os empregados sem lhes pagar os direitos devidos, passando a trabalhar como empregado e recebendo salários, ou mesmo os proventos de aposentadoria em caso de jubilação.

Durante o período em que a empresa funcionou auferiu os benefícios da força de trabalho dos empregados, que não dispunham de nenhuma participação em seu poder diretivo. Porém, quando sobreveio o infortúnio, despediu-os sem lhes pagar a devida contraprestação pelo trabalho (salários e direitos trabalhistas de natureza alimentar), pretendendo transferir-lhes as consequências da má performance patronal na gerência dos recursos empresariais.

Ajuizada a ação trabalhista e com um título judicial em mãos, os empregados encontram di? -culdades para receber o que lhes pertence, oportunidade em que descobrem que seu antigo empregador está trabalhando e recebendo salários, aposentado e auferindo os respectivos proventos ou até mesmo amealhando recursos em poupança.

A questão que se coloca é: pelo ordenamento legal em vigor, o ex-empregado tem, ou não, o direito de executar uma decisão que reconheceu a existência de créditos trabalhistas de natureza alimentar em seu favor, para tanto penhorando os salários, proven-tos de aposentadoria ou poupança do seu devedor (ex-empregador), que se bene? ciou dos frutos de seu trabalho?

Ao tratar da impenhorabili-dade, o artigo 649 do CPC já si-nalizava de forma signi? cativa a exceção quanto ao pagamento de prestação alimentícia (inciso IV do artigo 649 do CPC), assim reconhecendo que o crédito de natureza alimentar detinha condição especial, de modo que este benefício não pode ser concedido apenas a uma das partes, em detrimento de outra, quando os interesses contrapostos se refe-rem a verbas de mesma natureza, tanto em relação a um, quanto a outro.

A alteração promovida pela Lei 11.382/06 explicitou de forma ainda mais clara esta questão, estabelecendo expressamente que, não só em relação aos salários mas também quanto aos proventos de aposentadorias e pensões, e quantias destinadas "ao sustento do devedor e sua família", a impenhorabili-dade deixa de subsistir em caso de "penhora para pagamento de prestação alimentícia" (inciso IV e parágrafo 2º do artigo 649 do CPC), sinalizando que, em cumprimento à disposição legal expressa, ambos os interesses estão resguardados e assim de-vem ser satisfeitos. Ademais, a exceção legal não se refere apenas a "pensão alimentícia", pois não foi esse o conceito agasalhado pela lei, mas sim "prestação alimentícia", que detém conotação mais abrangente, assim incluindo os créditos trabalhistas, que ostentam inequívoca natureza alimentar, pois é com eles que o trabalhador consegue prover a sua subsistência, de modo que a tese da impenhorabilidade absoluta dos salários do ex-empregador, em desfavor dos salários do ex-empregado, se revela insustentável pelo ordenamento processual em vigor.

3. A constitucionalização do processo

Ao discorrer sobre a ideia mestra que norteou as alterações implementadas no processo civil na última década do século XX, Dinamarco1 destaca, com percuciência, que a garantia constitucio-nal de acesso à justiça não pode ser interpretada como simples ingresso em juízo, pois "seria algo inoperante e muito pobre se se resumisse a assegurar que as pretensões das pessoas cheguem ao processo, sem garantir-lhe também um tratamento adequado. É preciso que as pretensões apresentadas aos juízes cheguem efetivamente ao julgamento de fundo, sem a exacerbação de fatores capazes de truncar o prosseguimento do processo", sob pena do próprio sistema se tornar estéril, assim frustrando o direito de ação que detém garantia constitucional, abrindo caminho para a desagregação social, cujo resultado cabe ao direito evitar.

Ademais, ensina que o exercício da jurisdição também tem o escopo de "educar as pessoas para o respeito a direitos alheios e para o exercício dos seus", pois quando a justiça funciona mal "transgres-sores não a temem e lesados pouco esperam dela", o que leva ao descrédito das instituições. Neste sentido, quando um trabalhador detém uma decisão judicial que reconhece a existência de créditos em seu favor, e não consegue executá-la para receber o que é seu, tal não configura apenas um ape-quenamento de seu direito indivi-dual à jurisdição, mas comprome-te o próprio sistema jurídico, que se mostra ineficiente e incapaz de solucionar o confiito existen-te, estigma que pode levá-lo ao descrédito e asfixia, causando um dano a toda a sociedade, que sente o colapso de uma de suas artérias de oxigenação.

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Daí a necessidade de se evitar a "eternização dos confiitos e o prolongamento das angústias dos litigantes", garantindo o necessário equilíbrio entre duas forças antagônicas: "de um lado a celeri-dade processual, que tem por ob-jetivo proporcionar a pacificação tão logo quanto possível; de outro a ponderação no trato da causa e das razões dos litigantes, endereçada à melhor qualidade dos julgamentos".

Ao inserir o inciso LXXVIII no artigo 5º da CF/88, a Emenda Constitucional 45/04 ressaltou que estas duas forças não atuam em separado, mas como vasos comunicantes de um mesmo movimento, de modo que uma não existe se a outra não for observada.

Assim, se o ex-empregador tem direito aos seus salários, também deve responder pelo período em que se beneficiou da força de trabalho e pagar o débito que tem em relação ao seu ex-empregado, pois se trata de crédito que ostenta a mesma natureza (salarial). Ademais, é sempre saudável fazer valer as diretrizes fundantes da ciên-cia do direito ? nemine laedere e sum cuique tribuere ? ressaltando seu papel pedagógico e formador do comportamento social, sinalizando ao devedor que o sistema jurídico não admite que alguém possa beneficiar-se do trabalho dispendido por outro ser humano, deixar de entregar a necessária contraprestação que lhe pertence, e ficar tudo por isso mesmo, sem sofrer nenhuma consequência.

Nesta linha de raciocínio, mais insustentável ainda é admitir que alguém possa manter uma reserva que lhe sobra (poupança), deixar de pagar verbas de natureza alimentar a outrem, que delas neces-sita para atender às suas necessi-dades básicas de subsistência, de modo que o disposto no inciso X do artigo 649 do CPC, quanto à impenhorabilidade das cadernetas de poupança até quarenta salários-mínimos, não pode ser aplicado quando se trata de crédito trabalhista.

Erigido como fundamental pela Constituição Federal em vigor, o direito do trabalho, inclusive em sua vertente processual, se encontra cada vez mais permeável ao movimento de constitucionalização, que vem revolucionando a ciência jurídica contemporânea. Como bem ressalta Dinamarco, o "direito processual constitucional exterioriza-se mediante a tutela constitucional do processo", consistente na observância de um conjunto de princípios e garantias postos pela Constituição, como a isonomia e o devido processo legal, entre outros.

Neste passo, como reconhecer que está sendo observado o devido processo legal se a parte, vencedora numa ação, fica com uma sentença em mãos sem poder executá-la? Onde está o enforce-ment da jurisdição? Trocando em miúdos, para que serve a jurisdição, se é para terminar assim? Para que serve o estado democrático de direito, se os que devem continuam a dever, e os que têm...

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