O pensamento jusnaturalista no direito romano

AutorAntónio dos Santos Justo
Páginas239-312
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O PENSAMENTO JUSNATURALISTA NO DIREITO
ROMANO
A. Santos Justo*
RESUMO: Em Roma, o pensamento jusnaturalista é
fortemente tributário da filosofia estoica. Todavia, os
jurisconsultos romanos nunca puseram o problema da
lei injusta, porque, para eles, o direito é sempre “ars
boni ae aequi”. Não deixaram, todavia, de humanizar
o direito romano, inspirando-se em valores como a
aequitas, a bona fides, a pietas, a amicitia etc.
Palavras-chave: Pensamento jusnaturalista.
Jurisconsultos romanos. Direito positivo.
1 ANTELÓQUIO
Se acolhêssemos a sábia lição de Terêncio segundo a qual
nullum est iam dictum, quod non sit dictum prius1 e nos
deixássemos impressionar pela observação de Wieacker que vê no
direito natural uma espécie de “demónio” socrático que adverte mais
do que ordena, que inquieta mais do que adormece a consciência com
um sistema saturado de valores2, o presente estudo não teria grande
_________________________
* Licenciou-se em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
em que também prestou provas de Mestrado, de Doutoramento e de Agregação
em ciências jurídico-históricas. Fez sucessivamente concursos para Prof.
Associado e para Prof. Catedrático. Foi Presidente do Conselho Científico e
do Conselho Pedagógico e foi Director da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra. É também membro do Conselho Directivo da Asociación
Iberoamericana de Derecho Romano, sediada em Oviedo; faz parte do
Conselho de Redacção da Revista Brasileira de Direito Comparado, do
Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, com sede no Rio de Janeiro;
e é membro da Sociedade Científica da Universidade Católica e da Academia
Portuguesa de História.
1 Cf. Eunuco, prólogo 41.
2 Vide Franz Wieacker, Zum heutigen Stand der Naturrechtsdiskussion na
RFDUM 12 (1968) 123.
Revista Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 4, n. 7, p.239-312, jan./jun. 2013.
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sentido: muito, quase tudo, já foi dito; e o direito natural continua a
inquietar, ontem e hoje, sobretudo quem, preocupando-se com o
problema da justiça, persiste na corajosa ousadia de questionar a
legitimidade do direito positivo, como se assistíssemos ao diálogo entre
o sofista Calicles e Sócrates, de quem Michel Villey diz que “ha perduto
battaglie, ma non ha perduto la guerra3.
Mas não é menos sábia a sentença de que não há livro, por
mais gasto que esteja, que não consinta nova leitura. E, por outro lado,
o homem nunca deixou de perguntar por que deve obediência ao poder
e à lei. O pensamento positivista do direito não responde, porque não
existe, no seu entendimento, outro direito além do direito positivo4.
É certo que, nos nossos tempos, crescem as críticas a este
modo de pensar o direito. Há mesmo quem, como Mitteis, o considere
“o pior abuso do pensamento jurídico que se conhece na história do
direito alemão”5; e não faltam outras críticas, igualmente incisivas, de
que destacamos a insuficiência da lei6, a recusa da atitude acrítica do
juiz na realização do direito7 e o apelo a uma dimensão axiológica
constituída por valores que se devem procurar “no fundo ético da nossa
cultura, neste nosso momento histórico”8.
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3 Vide Michel Villey, Il concetto “classico” di natura dele cose em JUS XVIII
(1967) 46.
4 Vide Guido Fassò, Il diritto naturale (ERI, Edizioni Rai /Turim, 1972) 7; e A.
Santos Justo, Introdução ao estudo do direito5 (Coimbra Editora / Coimbra,
2011) 111-113.
5 Vide Rommen, Wieacker e Welzel apud Justo, ibidem 1231.
6 Vide A. Castanheira Neves, Escola da exegese em Digesta II (Coimbra Editora
/ Coimbra, 1995) 190-191; Luis Legaz y Lacambra, Filosofía del derecho5
(Bosch, Casa Editorial, S.A. / Barcelona, 1979) 98; e Fernando José Bronze,
Lições de introdução ao estudo do direito2 (Coimbra Editora / Coimbra, 377-
457.
7 Vide A. Castanheira Neves, O papel do jurista no nosso tempo em Digesta I
(Coimbra Editora / Coimbra, 1995) 42-46; Francisco Amaral, Direito civil.
Introdução7 (Renovar / Rio de Janeiro – São Paulo, 2008) 53-60; e Bronze,
ibidem 345-446.
8 São palavras de Castanheira Neves, A unidade do sistema jurídico: o seu
problema e o seu sentido (diálogo com Kelsen) em Digesta II, cit. 134-140.
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Revista Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 4, n. 7, p.239-312, jan./jun. 2013.
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Todavia, apesar destas críticas que alimentam a ideia de que o
positivismo é “flor de um dia”9, o pensamento positivista do direito
ainda persiste e, por isso, não surpreende que se continue a olhar para
o irredutível direito natural. Afinal, há ainda “un nombre de questions
qui attendent encore et attendront peut-être à jamais une solution
définitive10 e não se extinguiram as vozes que, no labirinto intrincado
da jurisprudência moderna, pedem “la vuelta a lo elemental, al
examen sossegado de los conceptos medulares del Derecho11.
A tarefa não é e nunca foi fácil. Observa-se que, apesar da sua
longa história, ainda não foi possível chegar à noção definitiva de direito
natural e que “le svariate dottrine finiscono com l’ avere in comune
soltanto la terminologia12. Por outro lado, o jusnaturalismo tem
servido de bandeira de ideologias conservadoras e revolucionárias que
necessariamente o fragilizam.
No entanto, a ideia jusnaturalista, discutida por filósofos e por
juristas13, mantém-se actual, quer porque a justiça humana continua a
ser frágil, quer porque o positivismo jurídico não responde
satisfatoriamente ao problema da legitimação do direito positivo14, quer
porque o problema da lei injusta ainda não foi resolvido, quer porque
o direito positivo, na versão positivista, é incapaz de resolver os novos
e delicados problemas que o progresso cria.
Neste contexto, importa olhar também para a filosofia grega e
para o direito romano. Com efeito, a ideia jusnaturalista constitui uma
resposta aos problemas do direito que somente serão devidamente
_________________________
9 Vide Miguel Sancho Izquierdo / Javier Hervada, Compendio de derecho natural
I (Eunsa / Pamplona, 1980) 116.
10 São palavras de P. W. Kamphuisen, Le droit naturel et les jurisconsultes
romains em RHDFÉ 11 (1932) 411.
11 São palavras de A. Fernández-Galiano, Conceptos de naturaleza y ley en
Heraclito em AFD V (1957) 259.
12 São palavras de Biondo Biondi, La concezione cristiana del diritto naturale
nella codificazione giustinianea em RIDA IV (1950) 130.
13 Vide Biondi, ibidem 129.
14 Segundo Alvaro D’Ors, A legalidade é humana, enquanto a legitimidade
depende do direito natural. Vide Alvaro D’ Ors, Direito e senso comum, trad.
de Miguel J. A. Pupo Correia (DIEL / Lisboa, 2011) 37.
A. Santo Justo
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