Pensar o direito: uma análise das correlações entre o raciocínio jurídico e a estrutura estatal

AutorFabiana Oliveira Pinho
Ocupação do AutorDoutoranda em teoria do direito pela USP. Pesquisadora-bolsista da FAPESP
Páginas305-339
305
Φ
O ESTADO E O MODO DE
PENSAR O DIREITO: uma análise das
correlações entre o raciocínio jurídico
e a estrutura estatal
Fabiana Oliveira Pinho1
INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende sugerir uma correlação entre o modo
de pensar jurídico e a conguração do Estado. O enfoque adotado cir-
cunscreve-se à losoa e à teoria do direito, e consiste, mais propria-
mente, no questionamento da natureza do vínculo que se estabelece en-
tre o modo de pensar, interpretar, aplicar e operar o direito – especial-
mente pelos tribunais e pela doutrina – e a formatação das instituições
básicas do Estado.
Assim, tendo por escopo a análise de como o direito comporta-
-se em certa disposição das estruturas do Estado, optou-se por divi-
dir este estudo em três partes essenciais – além desta introdução, das
considerações nais e da indicação da bibliograa citada. Na primeira
delas, a preocupação será apontar as caracteríticas centrais dos três mo-
delos de Estado que se sucederam desde o século XIX até os dias de
1 Doutoranda em teoria do direito pela USP. Pesquisadora-bolsista da FAPESP.
fabiana.pinho@usp.br.
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ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE FILOSOFIA DO DIREITO
hoje, quais sejam, Estado Liberal (laissez-faire State), Estado de Bem-
-Estar Social (national welfare State) e o Estado Pós-moderno (workfare
post-national State), dentro de uma análise que se aproxima aos tipos-
-ideais weberianos. Para tanto, o ponto de partida para a reconstrução
dos aspectos centrais destes modelos de Estado situa-se na bibliogra-
a abaixo indicada, principalmente nos textos e nas reexões de J. E.
Faria2, B. Jessop3, C. Innerarity e D. Innerarity4.
Já na segunda parte, pretende-se apresentar as principais correntes
do raciocínio jurídico que impactaram signicativamente o modo de pen-
sar o direito durante o século XX e também este início do século XXI. As-
sim, serão desenvolvidos, bastante detidamente, os aspectos nucleares da
Escola da Exegese, da Escola Histórica e da Concepção Tópica do Raciocí-
nio Jurídico, nos moldes da periodização sugerida por C. Perelman5.
O diálogo entre a primeira e a segunda parte ocorrerá na terceira,
quando se promoverá com mais rigor a aproximação entre as principais
linhas de desenvolvimento do raciocínio jurídico e as conformações
especícas do Estado6. Será, portanto, nesta porção do texto que se
poderá mais facilmente notar a hipótese que permeia o presente estudo.
Após realizar a indicação das principais Escolas do raciocínio
jurídico, apontando suas especicidades e propondo uma correspon-
dência entre estas e os sucessivos modelos de Estado do século XX, de-
fender-se-á posição de que, no Estado do século XXI, a tópica jurídica7
2 J. E. Faria. O Estado e o direito depois da crise. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
3 B. J. Narrating the future of national economy and national State? Remarks
on remapping regulation and the reinventing governance. Lancaster, Department of
Sociology, Lancaster University, LA 14YN e B. Jessop. e European Union and recent
transformations in statehood. Lancaster University, sem indicação.
4 C. Innerarity e D. Innerarity, La transformación de la política para gobernar uma
sociedad compleja. In: Estudios Políticos. n. 106, Madrid, out/dez de 1999.
5 C. Perelman. Lógica Jurídica. trad. V. K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
6 Certamente, a busca por esta correspondência não tem por objetivo obter um
encaixe perfeito entre uma Escola do raciocínio jurídico e um tipo de Estado, até porque
isso resultaria em uma simplicação por demais grosseira. Pretende-se, antes, vericar
a presença mais ou menos intensa de certo conjunto de características próprias de
determinada Escola no âmbito de cada um dos modelos de Estado eleitos.
7 Doutrina redescoberta por T. Viehweg, cujos contornos estão descritos em sua
famosa obra Topik und Jurisprudenz, publicada pela primeira vez em 1954.
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O ESTADO E O MODO DE PENSAR O DIREITO
consiste na forma de confrontar o fenômeno jurídico que, por ser capaz
de absorver a complexidade social, melhor consegue manejar as dicul-
dades que decorrem do pluralismo moral e da falta de consenso entre
integrantes de uma mesma nação ou de várias nações que compartilham
valores comuns. Deste modo, entende-se ser este o momento do estudo
que abriga alguma contribuição às reexões sobre o papel do direito, sua
efetividade e seus desaos perante a sociedade global organizada sob
estruturas estatais pós-modernas (workfare post-national State).
1 MODELOS DE ESTADO NOS SÉCULOS XIX, XX E INÍCIO
DO XXI
As análises jurídicas mais ambiciosas iniciam-se pela identica-
ção das características centrais do Estado, considerando as circunstân-
cias históricas que corroboraram para compor sua feição. Preocupam-se,
por certo, em denir a natureza da interação travada entre sociedade e
Estado, colocando em tela, entre outros pontos, o grau de proeminência
que este possui em relação aos demais atores sociais, bem como a neces-
sidade e a intensidade da sua presença na condição de ente com poder
normativo para organizar o ambiente social e garantir os termos básicos
do contrato pressuposto, em razão do qual fora criado. Estas questões
são relevantes para orientar a análise de cada um dos modelos de Estado
que se sucederam desde o século XIX até os dias de hoje, cujos traços
centrais sinteticamente serão expostos a seguir.
1.1 Estado Liberal
A conformação do Estado do nal do século XIX e início do sécu-
lo XX notadamente expressa inspiração no liberalismo econômico e po-
lítico que decorre das construções de A. Smith. No contexto de dúvida
sobre a capacidade de ser o Estado o ente mais adequado a impulsionar
a velocidade das transações comerciais, adensar as relações sociais e res-
peitar os direitos e liberdades civis até então conquistados, preferiu-se,

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