O Percurso Normativo do Reconhecimento dos Direitos Sexuais e Reprodutivos de Adolescentes

AutorBruna Angotti; Laura Davis Mattar
Páginas78-87

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1. Introdução

Tratar de direitos sexuais e reprodutivos de adolescentes é versar sobre seus direitos fundamentais. O livre exercício da sexualidade e a autonomia reprodutiva, pautados na liberdade de escolha e no consentimento, são pressupostos dos direitos à igualdade e à liberdade, garantidos aos adolescentes tanto na normativa pátria quanto na internacional ratificada pelo Brasil.

A adolescência, como se sabe, “é um período caracterizado por mudanças físicas, cognitivas e sociais rápidas, incluindo a maturação sexual e reprodutiva; a construção gradual da capacidade de assumir comportamentos adultos e funções que impliquem novas responsabilidades que exigem novos conhecimentos e habilidades”1. Trata-se de fase marcada por alterações biopsicossociais intensas e por diversas descobertas, entre elas os relacionamentos afetivos e uma possível iniciação da vida sexual, importante aspecto do processo de adolescer. Por essa razão, é fundamental que essa temática seja priorizada quando em pauta a produção de normativas voltadas àquele público. Em especial, porque “a busca da identidade e do novo, a curiosidade, a onipotência e a contestação despertam no adolescente uma sensação de invulnerabilidade, a qual, associada a pouca experiência de vida e a fatores socioculturais e econômicos, muitas vezes associados a fatores familiares, caracteriza este grupo como de potencial vulnerabilidade”2.

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Os resultados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar 20123 — um estudo transversal realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde, e com o apoio do Ministério da Educação, que envolveu 109.104 escolares do 9º ano do ensino fundamental (antiga 8a série) em 2.842 escolas, públicas e privadas, de todo o território brasileiro — revelaram que 28,7% desses escolares já tiveram relação sexual alguma vez na vida, sendo 40,1% dos meninos e 18,3% das meninas. Isso significa que aproximadamente um terço dos jovens iniciou sua vida sexual antes dos 15 anos de idade4. Em vista dessa constatação, é bem-vindo o reconhecimento de que adolescentes têm vida sexual ativa e podem, em razão dessa, se reproduzir. Só a partir dele é possível aos Estados adotarem medidas que diminuam os eventuais impactos negativos do início dito precoce das relações sexuais, como o não uso de preservativo, que aumenta a vulnerabilidade às doenças sexualmente transmissíveis e à gravidez na adolescência.

São muitos os desafios de se regulamentar, em geral, a reprodução e, em especial, a sexualidade. No caso dos adolescentes, o principal desafio reside no difícil equilíbrio entre a garantia do protagonismo juvenil e da autonomia versus a maturidade para exercê-los. A generalização, em termos de acesso a serviços e efetivação de direitos, baseada em critérios etários, acaba sendo potencialmente injusta, já que cada jovem tem um tempo para amadurecer, variando muito o desejo pela experimentação da sexualidade e, eventualmente, da reprodução5. Daí a importância da educação sexual e reprodutiva para adolescentes voltada a fornecer as informações e o conhecimento necessários para o exercício da sexualidade, que também contribui para uma tomada consciente de decisão quanto ao início da vida reprodutiva.

Levando em consideração a discussão ora apresentada, o objetivo central deste artigo é apresentar se e/ou de que maneira as temáticas da se-xualidade e da reprodução são abordadas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na Convenção sobre os Direitos da Criança (a “Convenção”), da Organização das Nações Unidas (a “ONU”), os dois principais documentos sobre os direitos da criança e do adolescente válidos no Brasil. Tendo em vista que ambas as normativas são frutos do seu tempo, ou seja, documentos históricos produzidos em uma época sem o reconhecimento formal dos direitos reprodutivos e dos direitos sexuais (que ocorreu somente em 1994 e 1995, respectivamente), após apresentar a definição atual desses direitos, expõem-se as atualizações normativas que, de uma forma ou de outra, atualizam o conteúdo das normativas em vigor. Por fim, o artigo apresenta uma breve análise crítica e propositiva, que aponta como o principal desafio a ser enfrentado pelo Estado brasileiro a diminuição da distância entre a lei e a prática e a consequente implementação de políticas públicas voltadas a efetivar os direitos sexuais e reprodutivos de jovens.

2. O estatuto da criança e do adolescente

Ao entrar em vigor em 1990, o ECA inaugurou um novo paradigma legal no tratamento de crianças e adolescentes no Brasil, revogando o então já ultrapassado Código de Menores (Lei n. 6.697/79). Pensado e construído no contexto de abertura democrática, já sob a égide da Constituição Federal de 1988, o ECA é fruto de intensa participação de movimentos sociais — em especial articulados na Assembleia Nacional Constituinte de 1987 —, de órgãos governamentais — como o Ministério da Educação — e de membros do judiciário e do Ministério Público.

A partir de sua adoção, a criança e o adolescente passaram a ser considerados sujeitos de “todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana” (art. 3º), sendo o dever de assegurá-los “com absoluta prioridade” compartilhado entre a família, a comunidade e o poder público (art. 4º).

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O não cumprimento dessas obrigações permite que esses entes sejam responsabilizados pela violação aos direitos da criança. Tal previsão está em consonância com a Constituição Federal, adotada em 1988, que, em seu art. 227, garante à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, “[...] o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária [...]”.

De acordo com o parágrafo único do art. do ECA, a garantia de prioridade aos direitos da criança e do adolescente compreende a “preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas”, bem como a “destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”. Assim, entende-se ser imperativa a elaboração de políticas transversais que deem conta de assegurar que crianças — de zero a doze anos — e adolescentes — de doze aos dezoito anos — sejam de fato sujeitos de direitos.

O ECA estabelece também em âmbito nacional a doutrina da proteção integral, assegurando às crianças e aos adolescentes brasileiros os direitos humanos de todos, para além de direitos específicos relativos à sua idade. A lei esmiúça os direitos fundamentais assegurados, tratando, em especial, do direito à vida e à saúde; à liberdade, ao respeito e à dignidade; à convivência familiar e comunitária; à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer; bem como à profissionalização e à proteção no trabalho.

3. A Convenção sobre os direitos da criança

Já a Convenção foi adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 19906, e é o principal documento internacional sobre os direitos das crianças e dos adolescentes. Entre outros, ela prevê o direito das crianças à liberdade de expressão (art. 13) e a ter sua opinião levada em consideração, de acordo com sua idade e maturidade (art. 12); a ter acesso à informação (art. 17); a gozar do melhor padrão de saúde possível (art. 24); e à educação (art. 28).

Em seu texto, a Convenção traz quatro princípios que devem ser levados em conta pelos Estados-partes na elaboração e execução de quaisquer políticas públicas relacionadas às crianças. São eles: (i) as crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos em “peculiar condição de desenvolvimento” (também previsto no art. 6º do ECA); (ii) deve ser dada absoluta prioridade aos direitos da criança e do adolescente (conforme também preconiza o art. 4º do ECA e o art. 227 da Constituição Federal);
(iii) a criança e o adolescente têm direito à proteção integral; e, ainda, (iv) deve ser sempre levado em consideração e estimulado o protagonismo infantojuvenil.

A Convenção tem natureza jurídico-vinculante, ou seja, os Estados-partes que a ratificam, como o Brasil, têm a obrigação de implementar os direitos lá previstos. Com a finalidade de examinar os progressos realizados no cumprimento dessas obrigações, a Convenção criou, em seu art. 43, o Comitê de Direitos das Crianças (“o Comitê”), integrado por especialistas de reconhecida integridade moral e competência nas temáticas abordadas. O Comitê, consoante o art. 44, recebe periodicamente dos Estados-partes relatórios informando as medidas adotadas e os progressos alcançados na implementação dos direitos reconhecidos na Convenção. Além da análise desses relatórios, o Comitê elabora Comentários Gerais que interpretam os direitos e princípios previstos na Convenção, atualizam seu conteúdo e suprem possíveis lacunas e obscuridades de seu texto.

4. Sexualidade e reprodução no ECA e na convenção

Vinte e cinco anos atrás, pouco se falava sobre o exercício da sexualidade e da reprodução por adolescentes. Assim, o ECA e a Convenção não tratam da sexualidade, da paternidade ou da maternidade adolescentes. No que diz respeito à sexualidade, referem-se somente ao direito da criança e do adolescente de não serem vítimas de exploração ou abuso sexual (arts. e 240 a 241-E do ECA e 19 da Convenção). Oferecem, portanto, uma perspectiva dita ‘negativa’ do exercício da sexualidade, isto é, o

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direito de não ser objeto de abuso ou exploração, no sentido paliativo de combate às violações, em vez de declarar a liberdade sexual e reprodutiva em um sentido positivo e emancipatório. Não há, pois, uma menção ao exercício da sexualidade livre, prazerosa e...

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