O que se perdeu na tradução

AutorRachel Sztajn
Páginas7-15

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A o se reformar um conjunto de Anormas jurídicas, cumpre verificar, com cuidado e atenção, se uma alteração no conteúdo de dispositivos antes vigentes pode gerar impacto em incentivos. As mudanças nas normas jurídicas devem ser precedidas de debates e de séria avaliação das instituições sociais, dos costumes e, especialmente, de quais incentivos serão adotados para proporcionar maior aderência às inovações e evitar rejeição ou descumpri-mento. Conforme destacado por Ronald Coase, é importante ainda que os custos de transação sejam atenuados ou eliminados.

As mesmas preocupações são aplicáveis à importação de normas jurídicas. A reutilização de normas não é uma boa solução e a experiência comprova que a cópia de todo um conjunto de normas, como um código, é situação ainda pior. Se os códigos têm por objetivo reduzir a incerteza das pessoas na tomada de decisões, permitindo a avaliação dos custos e benefícios, são necessárias longas e árduas discussões antes da aprovação e entrada em vigor de um novo código para garantir que ele refli-ta, de modo adequado, as instituições e demandas sociais.

Law and economics é uma importante ferramenta para avaliar as mudanças normativas, principalmente no que diz respeito a custos de transação e externalidades. No entanto, no Brasil, em 2002, essa preocupação não esteve no horizonte do legislador, conforme demonstram as análises do Código Civil. O legislador não deu atenção aos incentivos, ignorou custos de transação e externalidades negativas. Nesse particular, a disciplina do chamado "Direito da Empresa" é a mais inadequada, posto que trata das organizações econômicas privadas.

O presente artigo discute determinados dispositivos legais, a criação de custos de transação e os efeitos de segunda ordem decorrentes de imprecisão conceitual. Destacam-se as definições de empresário e empresa na comparação das políticas legislativas brasileira e italiana.

1. Introdução

A tendência dos países de civil law de manter códigos como pontos de referência têm seus méritos. Acima de tudo, os códigos são partes da tradição jurídica e, como

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sistemas de normas positivadas, ajudam a organizar o objeto da disciplina normativa. Os mais importantes códigos - que, de acordo com os historiadores, foram os códigos franceses - serviram como instrumentos de política, ao garantir a igualdade entre os cidadãos e evitar que os juízes elaborassem normas particulares e favorecessem a nobreza. Nesse sentido, os códigos também funcionam como meio de controle do Estado sobre os cidadãos.

Quando um código reflete as instituições sociais, as alterações normativas secundam mudanças estruturais, razão pela qual se diz que os sistemas jurídicos são abertos: eles influenciam e são influenciados por instituições e tendências sociais majoritárias. A constante influência do Direito na sociedade e da sociedade no Direito evita que normas obsoletas, que criam custos de transação, sejam mantidas. As exceções refletem a captura do legislador e/ou a sua atuação por interesses próprios.

E os códigos, conjunto sistematizado de normas, tornam-se obsoletos, de forma irrecuperável? Os códigos têm um período de vigência findo o qual eles expiram? Aparentemente, os brasileiros consideraram os Códigos Civil e Comercial expirados e optaram por produzir um novo código, o Código Civil de 2002.

O Código Comercial brasileiro de 1850, uma lei influenciada por pessoas que conheciam a atividade e as necessidades e demandas do comércio, embora não se tivesse tal noção, servia para reduzir custos de transação. Desde sua promulgação, muitas e importantes normas o modificaram; no entanto, o código, ou o que restou do diploma original, era ponto de referência das normas supervenientes.

O novo Código Civil incorporou partes do que restou do "antigo" Código Comercial, mas, em razão da imprecisa terminologia adotada, é fonte de custos de transação e gera incompreensão, o que é nítido após meros cinco anos de sua vigência.

Conforme demonstrado abaixo, o uso de palavras que não têm significado técni-co-jurídico, a mera reprodução de normas estrangeiras e inovações inadequadas comprometeram a função primordial das normas: corrigir incentivos, reduzindo os custos sociais (social costs) e as externalida-des negativas.

2. A legislação brasileira antes de 2002

Os códigos de direito privado anteriores, comercial e civil, refletiam a sociedade e as instituições sociais do século XIX e do começo do século XX. Particularmente o Código Civil, baseado nos códigos europeus do século XIX, tinha como núcleo os indivíduos e a propriedade rural e nenhuma norma relacionada ao agribusiness ou adequada a uma sociedade de serviços.

Uma revisão era imprescindível: normas especiais ou, como alguns afirmaram, leis esparsas atualizando o Direito de Família, os direitos das mulheres e das crianças. O Código Comercial foi modificado no mesmo processo e o Direito Tributário contribuiu.

Porém, durante a década de 1960 houve movimento em direção à unificação do Direito das Obrigações que resultou na elaboração, nos anos 1970, de pro-jeto de novo Código Civil que receberia parte do Código Comercial e, segundo se supunha, modernizaria a legislação brasileira. Seja lá o que a expressão pretendesse significar.

Alegou-se como justificativa da primeira proposta o fato de os litígios civis e comerciais serem submetidos ao mesmo juízo e Código de Processo Civil, não havendo razão para a existência de normas diferentes para disciplinar as obrigações.

Sob a influência do Código Civil italiano, no regime militar que governava o país na década de 1970, a tendência de favorecer o controle estatal era compatível com o projeto elaborado pela comissão de

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juristas sob a supervisão e coordenação de Miguel Reale. Os membros, com exceção de um professor de Direito Comercial, ensinavam Direito Civil ou Direito Processual e tal circunstância contaminou o projeto e não chegou a ser eliminada do código nos trabalhos legislativos posteriores.

Quando vigiam os dois códigos de direito privado qualificar uma atividade como comercial era resultado da comparação da atividade em concreto com a lista prevista no art. 19 do Regulamento n. 737, de 1850. Tal norma refletia a jurisdição comercial especial à qual eram submetidos todos os litígios de natureza mercantil que, embora extinta, era referência doutrinária.

A lista era usada para indicar, mesmo depois da extinção dos Tribunais de Comércio, as atividades sujeitas à disciplina do Código Comercial, bem como pelos decretos ou leis que o modificaram ou complementaram. A lista era parâmetro para classificar como comerciais todas as sociedades cujo objeto contivesse ao menos uma daquelas atividades.

As atividades descritas no art. 19 eram: produção ou transformação de produtos, revenda de mercadorias ou animais, transporte, seguro, serviços financeiros e entretenimento público, além de atividades auxiliares. A doutrina considerou essas atividades como de natureza comercial.

A importância da classificação das atividades é demonstrada pelo fato de que, não obstante a revogação do mencionado Regulamento de 1850 - cujo teor não foi reproduzido em nenhuma outra norma -, a lista permaneceu como fonte que era observada e adotada por juristas e Tribunais no enquadramento de atividades econômicas. Qualquer um que estudasse o Direito Comercial invocaria a lista para construir seu trabalho.

3. Novo Código

Em janeiro de 2002, o Congresso brasileiro aprovou o novo Código Civil com base no projeto elaborado em meados dos anos 1970. A reforma, que tinha como ob-jetivo declarado modernizar as leis de direito privado brasileiro, unificou a legislação de obrigações em um só diploma.

Note-se que o Direito Comercial não desaparece nem há unificação do direito privado.

Quando o projeto foi elaborado, a parte relativa às atividades econômicas era designada "Da Atividade...

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