A reconsideração da personalidade jurídica nos contratos mercantis de colaboração

AutorAndréia Cristina Bezerra - Leonardo Netto Parentoni
Páginas189-210

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1. Delimitação do tema

Este estudo tem por objeto demonstrar a inaplicabilidade da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine, superamento della persona-lità, desestimación de la personalidad jurídica ou Durchgriff) aos contratos mercantis de colaboração. Por meio da análise econômica, aplicada às características peculiares dessa espécie de negócio jurídico, buscar-se-á fundamentar as conclusões de que: (i) os contratos mercantis de colaboração regem-se por lógica própria, ligada a parâmetros fornecidos pelo mercado; (ii) há no sistema jurídico brasileiro alternativas ao uso da desconsideração da personalidade jurídica mais consentâneas com o sistema da civil law e com o funcionamento dos contratos mercantis de colaboração, o que torna a desconsideração incompatível com o regime peculiar dessa espécie contratual, por causar-lhes insegurança e produzir externalidades negativas; e (iii) a disregard doctrine já começa a ser abandonada na própria common law, berço do ins-tituto, justamente em virtude de seus efeitos colaterais e de algumas contradições intrínsecas, como a não diferenciação entre credores voluntários e involuntários.

Ao longo desta análise, será também mencionada a jurisprudência afeta ao tema, como forma de exemplificar o raciocínio com questões práticas.

2. Desconsideração da personalidade jurídica: breve notícia histórica

As primeiras "pessoas jurídicas" (uni-versitas) foram idealizadas no direito pós--clássico (Justinianeu), com as corporações e as associações, que não se extinguiam com a morte dos associados, desde que fossem substituídos. Os interesses de tais entes ultrapassam os limites da vida individual, perpetuando determinados valores e tradições. Nesta fase, teve início a teorização concernente à pessoa jurídica como um ente abstrato, sujeito de relações jurídicas, com responsabilidade distinta da de seus membros. Como consequência, hou-

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ve a desvinculação dos débitos ou créditos da pessoa jurídica em relação aos particulares que a compunham (separação de patrimônios).

O Direito germânico reconhecia as associações, contudo, não as distinguia de seus membros. Assim, a contribuição germânica se deu na chamada Teoria da Ficção, através da introdução de alguns elementos, como o direito dos membros utilizarem os bens comuns, o direito à cota no caso de dissolução ou lícita retirada e da responsabilidade pelas obrigações da uni-versitas.

Os glosadores foram os primeiros que deram substância à sistematização da formação da personalidade abstrata, distinta daquela de seus componentes, colocando em evidência o conceito de instituição que estava latente no Direito canônico.

Observam-se a seguir vários momentos evolutivos na formação da teoria relacionada aos atos praticados pelas pessoas jurídicas. Todavia, não é objeto deste texto discorrer sobre tais teorias, visto que esta tarefa já foi desenvolvida, com brilhantismo, por textos clássicos.1

Nas linhas seguintes, abordam-se apenas os antecedentes jurisprudenciais do instituto, reservando-se tópico específico para sua conceituação teórica.

Com efeito, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é uma criação pretoriana, posteriormente debatida e aprimorada pela doutrina. Costuma-se citar como antecedente remoto o caso Bank of United States vs. Deveaux,2 de 1809. Trata-se de lide relacionada à definição de competência das Cortes Federais norte-ameri-canas em questões envolvendo cidadãos domiciliados em diferentes Estados-mem-bros. Na Europa, o leading case sobre o tema data de 1920, quando o Tribunal Supremo alemão decidiu responsabilizar o sócio de uma sociedade unipessoal por obrigações contraídas em nome desta.3

Todavia, o julgado que ganhou maior notoriedade tornando-se sinônimo da teoria da desconsideração foi Salomon vs. Salo-mon & Co., ocorrido na Inglaterra, em 1897.4 Desde então, a disregard doctrine, como é conhecida na common law,5 se expandiu para os mais diversos países. No Brasil, o primeiro acórdão sobre o tema de que se tem notícia foi proferido pelo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, em 1955.6 Trata-se de decisão corajosa e pioneira, uma vez que na época a doutrina pátria ainda não havia abordado o tema, o que somente viria a ocorrer cerca de quinze anos depois, com o estudo pioneiro de Rubens Requião.7 Porém, antes de discorrer sobre este estudo, é preciso mencionar, em ordem cronológica, as principais correntes teóricas sobre a teoria da desconsideração. A isto se dedica o tópico seguinte.

3. Desconsideração da personalidade jurídica: principais teorias

No plano doutrinário, a obra de Worm-ser,8 de 1927, é reconhecida como uma

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das primeiras a tratar cientificamente da desconsideração da personalidade jurídica. Não obstante, a sistematização técnica do instituto veio anos depois com o clássico estudo de Rolf Serick9 e a contraposição de Müller-Freienfels.10 Digna de nota, ainda, a obra de Piero Verrucoli,11 de 1964. Estes podem ser considerados os autores clássicos (mainstream) sobre o tema no Direito Comparado.

Como a descrição de tais teorias não é o objetivo central deste estudo, deixa-se, propositadamente, de apontar as características da desconsideração na visão de cada um desses autores (teoria unitária, não unitária, subjetiva, objetiva, etc.).

No plano interno, coube a Rubens Re-quião o pioneirismo no trato da matéria, em artigo de 1969, fortemente influenciado pelas ideias de Serick. Conforme destaca o jurista paranaense, trata-se de um instituto que visa a impedir que a personalidade jurídica seja utilizada para acobertar a prática de fraudes.12

Trata-se, portanto, de um instrumento para afastar a separação patrimonial antes prevista expressamente no art. 20 do Código Civil de 1916,13 e hoje mantida como um princípio. Perceba-se, ainda, que na formulação clássica da teoria a fraude era pressuposto para sua aplicação (desconsideração baseada no elemento subjetivo).14

Este entendimento começou a ser modificado a partir dos estudos de Fábio Konder Comparato, para quem a desconsideração possuiria também um componente objetivo, podendo decorrer de mera confusão patrimonial, sem que houvesse a intenção deliberada de utilizar a personalidade jurídica para a prática de fraudes.15

Por fim, Calixto Salomão Filho agrega um novo componente à análise do instituto. Referido autor afasta a concepção, por ele rotulada de liberal, que enxerga na personalidade jurídica uma regra e, conse-quentemente, considera a disregard uma exceção aplicável, exclusivamente, quando provados os pressupostos legais, como confusão patrimonial, fraude ou abuso de poder. Ao invés desta teoria, por ele rotulada de "liberal", o Professor Calixto defende que o fundamento da desconsideração da personalidade jurídica é garantir a distribuição de riscos, tal como desejada pelo legislador (o que o citado autor denomina de teoria intervencionista).16 Dada sua importância e repercussão prática sobre os contratos mercantis, maiores considerações sobre este entendimento serão feitas adiante, em tópico específico. Por ora, basta sublinhar alguns outros aspectos da desconsideração.

Primeiro o de que a técnica de eliminação progressiva, pugnada pela doutrina, revela que um ato objeto de desconsideração não é atingido em sua existência e validade. Esta teoria atua unicamente no plano da eficácia do negócio jurídico, como já salientara Rubens Requião em seu pioneiro estudo.

"O mais curioso é que a disregard doctrine não visa a anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconside-

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rar no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem. É caso de declaração de ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo, todavia, a mesma incólume para seus outros fins legítimos."17

A passagem acima revela ainda outros dois atributos importantes da teoria em exame. Primeiro o de que sua aplicação recai sobre um negócio jurídico específico, desde que relacionado à atividade empresarial. Isso porque atos isolados, não inseridos na cadeia maior da atividade empresarial, demandam a aplicação de institutos diversos, como a fraude a credores, a teoria da aparência ou o negócio simulado, nunca, porém, a disregard doctrine.18 A segunda característica é consequência da primeira e significa que a desconsideração não aniquila a personalidade jurídica, de maneira geral e abstrata, mas apenas a flexibiliza, assegurando o adimplemento de um crédito concreto, específico e delimitado. Determinada a desconsideração em favor de um credor, tal decisão não se estende automaticamente aos demais. Cada caso é um caso.19

Importante destacar, ainda, que o desconsiderado incorre em responsabilidade pessoal e diretapelo débito, atuando como devedor originário e não como mero responsável (Schuld e Haftung do Direito alemão). Destarte, o sócio contra o qual é aplicada esta teoria não tem direito de regresso contra a sociedade (o que ocorreria caso ele fosse considerado como mero responsável).

Ponto que deveria ser pacífico, mas que vem se mostrando polêmico, diz respeito à...

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