Perspectiva existencial da relação de emprego

AutorAugusto César Leite de Carvalho
Ocupação do AutorPossui mestrado em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará e doutorado em Direito das Relações Sociais
Páginas327-387

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11. 1 A tradicional vertente patrimonialista do direito laboral

O direito do trabalho, tradicionalmente, sempre se associou a prestações pecuniárias que se tornavam – como ainda se tornam – exigíveis como contrapartida pela energia de trabalho posta à disposição da empresa, pouco importando se o modo, o tempo, o lugar ou a destinação do serviço eram ofensivos à moral, aos direitos de liberdade, à condição humana ou à dignidade enim do traba-lhador. Por vezes, a prestação laboral se realizava em detrimento da própria ordem jurídica e o vetusto direito do trabalho se mostrava apto apenas a predizer qual a sanção em pecúnia compatível com a ilicitude patronal assim cometida.

Se o empregador exigia trabalho além do limite legal, e além do limite isiológico do empregado, sem conceder-lhe sequer as horas ou dias de repouso que lhe permitiriam descansar, conviver em família e na sociedade, o direito do trabalho incidia para assegurar, tão só, a remuneração condizente com a ilicitude patronal, tanto por quanto. Se o empregador disponibilizava um ambiente insalubre ou de risco à integridade física, o direito do trabalho comprazia-se em cominar adicionais remuneratórios que supostamente compensariam o adoecimento ou a morte precoce a que resignadamente se submetia o empregado.

A monetização dos direitos sociais, e do direito do trabalho em particular, sofreu ingente abalo a partir de quando se sucederam as constituições dos estados de direito democrático, as quais inseriram as expectativas positivas de saúde, educação, existência digna e trabalho decente, que a tudo provia, entre os direitos humanos cuja constitucionalização os fazia convertidos em direitos fundamentais. A democracia, como conceito até então formal ou atrelado aos direitos de liberdade e participação, ganhou um significado novo e rico em conteúdo moral ou substancial, pois seria democrático apenas o estado que garantisse a prestação de direitos sociais e ambientais indispensáveis à consecução do projeto humanitário.

A Constituição de 1988833, fazendo coro ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), resgatou das sombras do antigo regime autoritário o postulado da dignidade da pessoa humana834 e, ao transformá-lo em fundamento da República (art. 1º, IV), estabeleceu uma ordem econômica que somente se legitimaria enquanto fundada na existência digna e na valorização do trabalho humano, com vistas à realização da justiça social (art. 170). Sobreveio, em seguida e coerentemente, um novo Código Civil a prescrever, por meio de cláusulas abertas à construção hermenêutica, o caráter intransmissível, irrenunciável e indisponível de todos os direitos inerentes à personalidade (artigos 11 a 21 do CC).

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Para dar efetividade ao art. 12 do Código Civil – que protege os direitos da personalidade contra a ameaça de lesão – faltava um conjunto de normas processuais que aparelhasse a tutela judicial em face do ato ilícito ainda não convertido em dano, pois era forte, no sistema processual anterior, a concepção de que a vontade do ofensor, sendo intangível (também nessa fase em que o ilícito ainda não havia provocado o dano), não poderia ser imposta pelo credor ou pelo Poder Judiciário, resolvendo-se as lesões quase invariavelmente em perdas e danos (nemo praecise potest cogi ad factum). Um novo ordenamento de direito processual veio então a lume, de início por meio do art. 461 do CPC de 1973 e adiante com o art. 497 do CPC de 2015, ambos a prestigiarem a tutela específica das pres-tações de fazer ou não fazer e este último a dispor, em seu parágrafo único, que “para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo”.

Faltava, porém, um elo no caminho de atualização harmônica do processo judicial: porque os conlitos envolvendo o trabalho não digno são normalmente conlitos de massa, o direito processual atualizou-se para ofertar um microssistema normativo – encimado pelas Leis ns. 7.347/1985835 e 8.078/1990836 – que permite aos entes coletivos, em especial às associações sindicais e ao Ministério Público, o ajuizamento de ações nas quais o trabalhador não tem seu nome e vulnerabilidade iden-tificados. Propõem-se tais ações judiciais à resolução das lides enquanto o interesse de promover o equilíbrio no ambiente laboral ainda existe in natura, pois não transformado em delito consumado ou mera expressão pecuniária. Nesses processos coletivos, as decisões têm efeito in utilibus – ou seja, só vinculam o trabalhador quando o juiz airma a procedência do pedido837 – e, ao reger a proteção do interesse transindividual, o art. 83 da Lei n. 8.078//1990 é expresso:

Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.

Nenhuma de tantas mutações normativas está apta, entretanto, para surtir efeito se não estão aten-tos os atores sociais e processuais às relexões de Uriarte, fundadas nas lições de Eduardo Couture:

“O momento supremo do Direito não é o momento do grande tratado doutrinário”. Isso é muito importante. Sem isso, não podemos aplicar o Direito. É importante, mas não é o momento supremo do Direito. Acrescentava ele (Couture): “O momento supremo do Direito tampouco é o momento do grande código, a grande codificação, essa grande catedral do Direito, que é o Código Civil, o Código Penal, a Consolidação das Leis do Trabalho”. Isso é muito importante, mas não é o essencial. Tampouco o momento supremo do Direito é o momento da grande constituição. Claro que é fundamental. Estamos advogando pela sua aplicação correta pelos juízes. É fundamental, é importante, mas não é o momento supremo do Direito. “O momento supremo do Direito” – diz Couture – “é aquele no qual ele, essas obras monumentais, faraônicas, essas catedrais aterrissam na realidade”. E esse momento está nas mãos do juiz. “O momento supremo do Direito é aquele no qual um desconhecido juiz de província de uma perdida cidade do interior, sozinho, frente à sua consciência, assina uma sentença reconhecendo ou não um direito a um cidadão, fundado”, disse Couture – “no Preâmbulo da Constituição, aplicando um princípio constitucional”. Está nas mãos dos juízes fazer com que os grandes discursos, que as grandes fantasias jurídicas, sejam ou não reali-dade. Evidentemente, os juízes não estão sozinhos, não podem estar sozinhos. Para isso, é necessário que a doutrina desenvolva realmente um pensamento fundado nos direitos e lhes forneça um corpo conceitual que permita a aventura de aplicar corretamente a Constituição, a norma internacional etc. É também necessário o apoio dos advogados. Os juízes não vão sentenciar nesse sentido, se não houver um advogado que opine na demanda e que a fundamente apropriadamente.838

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Ilustremos, então, quais consequências práticas e jurídicas se notam, no universo do direito do trabalho, a partir de quando se prioriza a perspectiva existencial desse ramo do Direito em detrimento do seu teor puramente patrimonial e, ademais, manejam-se as ações coletivas com tal desiderato. Embora seja amplo o horizonte que se abre nessa nova dimensão do direito laboral, propomo-nos a identificar aspectos relacionados ao direito ao meio ambiente de trabalho ecologicamente equilibrado, inclusive no tocante aos limites da duração do trabalho compatíveis com o direito fundamental à saúde do...

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