Perspectivismo x 'La Liberté' de Goya

AutorAntonio Araújo
Páginas63-82

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Em célebre passagem de Raça e história, Lévi-Strauss (1952, p. 383-84) aventou que a humanidade, enquanto razão ou ideia que abarca toda a natureza humana, sem distinção de raça, civilização..., é um fenômeno tardio, limitado, instável e antinômico. Insignificante, já o citamos, “para vastas frações da espécie humana, e durante dezenas de milênios”.

Dá a entender Michel Foucault, sobre a constituição egocêntrica de tal discurso — coqueluche, absolutismo e catecismo antropocêntricos, homo armagedom:

[...] o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tem posto ao saber humano. Escolhendo uma cronologia relativamente curta e um espaço geográfico restrito — a cultura européia desde o século XVI —, pode-se estar certo de que o homem é uma inovação recente. Não foi em torno dele e dos seus segredos que, por longo tempo, obscuramente, o saber rondou. De facto, entre todas as mutações que afectaram o saber das coisas e da sua ordem, o saber das identidades, das diferenças, dos caracteres, das equivalências, das palavras — em suma, no meio de todos os episódios desta profunda história do Mesmo —, um único, aquele que começou há um século e meio e que talvez esteja em vias de se encerrar, deixou aparecer a figura do homem. [...] O homem é uma invenção, e uma invenção recente, tal como a arqueologia do nosso pensamento o mostra facilmente. E talvez ela nos indique também o seu próximo fim. (FOUCAULT, 1987, p. 421. Cf. SCHELER, 1955)

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Aí está a natureza humana — vetor e vértice, elo e élan da antropologia moderna. Um dualismo anfíbio, híbrido empírico-transcendental (cf. FOUCAULT, 1996; 1994) onde coabitam, tormentosamente, fato e direito, ser e conhecer, matéria e cultura. Extensões unidimensionais ou lineares da condição objetiva à subjetividade condicionante? Não, co-pulsar do humano-sujeito ao humano-objeto, e vice-versa, que pretendem fundar-se numa imanência e reificação mútuas, autorreferidas, auto impostas.

Tradicionalmente, a província do humano se igualava às fronteiras da tribo, do grupo linguístico ou da aldeia. Tanto que os povos antigos se autoproclamavam «os seres humanos», «a gente de verdade», «os excelentes», etc., inferindo uma segregação e concepção dos estrangeiros qual sub -humanos, ou mesmo não humanos — bichos, quiçá fantasmas (cf. ARON, 2008; LABURTHE-TOLRA e WARNIER, 2003).

Ambíguo? Paradoxal? A (ontogenia da) avareza não alastra ou espalha os atributos do humano ao conjunto da espécie, e, no entanto, integra tais predicados. Reverbera antropologia espontânea, consentânea, coerente; traduz um plexo ideológico congênito à humanidade. Etnocentrismo, bem como sua manifestação sociológica, o bom senso, participam do contra universalismo perspectivista sendo universal, a coisa melhor partilhada entre nós, viventes humanos.

Intrigante, pois nem sequer vislumbramos, modernamente, alguma comunhão ou coalizão libertária de etnocentrismos, mas colonização por um franco-ideal (ou bem jurídico-penal europeu) de liberdade superlativa: parábola universal da catequese ou proselitismo gentio, pagão-iluminista; signo iconoclasta e praguejador.

No etnocentrismo e cosmopolítica ameríndios (interseção continental), parece que a animalização do forasteiro, ou bicho ou gente, não leva à negação de sua humanidade. Já o europeu sonda, articula, deflagra strikes por holocaustos culturais, num canibalismo a dízimos expropriatório de corpos e almas. O que depõe, despe, despoja estrangeiros, mormente os não alinhados, de certa humanidade-culminante. Fazendo-o pelo exercício messiânico de uma liberdade proprietas — bem jurídico superior —, à imagem e semelhança da tecnologia inquisitorial donde se vitimara, e que a enformou.

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Sobremaneira por Goya, virá à tona uma dádiva, cobiça ou aptidão liberal-universalista do Iluminismo europeu que é não apenas inserção, aversão e facção covardes, porque beligerantes e comparativamente desproporcionais, mas também diligente, premeditada e hiperbólica ao retirar o mundo de perspectiva. Capturando, raptando, pregando e mundanizando o “Pinóquio” da liberdade mais autêntica, em legítima defesa de sua nociva honra libertária (excludente de culpabilidade).

Nesse contexto e estúdio cenográficos, em 1797, Goya propôs uma alegoria que vicejou, trilhou, surtiu poderoso encantamento ou fascínio: A Verdade revelada pelo Tempo e testemunhada pela História (Figura VIII).

O tempo como harpa maviosa de sereia, mecanismo que revela gradualmente a verdade (distensão hipnótica) é um antigo capítulo ou fascículo das iconologias. Goya, entretanto, forjou sua imagem alegórico-tem-

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poral em orbe, gaia, maison transgressora, pós-medievo: celeiro, harém e paiol da “boa nova”.

Goya é adido cultural que se imiscuiu, cinegrafou, psicogravou, captou, rubricou o seu tempo. De fato, a magnitude e narrativa de Goya são modernizadoras17, diletantes. Por um reducionismo de auges, ou pela imunidade civilizatória de ápice (moderno) destronando apogeus, ele supôs que, ao testemunhar a revelação da verdade, o objeto da história não mais seja episódico, separatista, fragmentado em cordilheira de reis, ou pinacoteca de batalhas e insurreições.

Tal objeto se traduz na irrupção do que é verdadeiro, interior ao fluxo temporal da humanidade, recém vermifugada, curada de uma etapa (anticlímax) inferior da razão, malsucedida, vilã, anêmica, de repescagens. O noûs da verdade é a luz, penetrando assertivamente; um holofote compressor pavimentando, urbanizando as trevas e seus habitantes. Tanto que Goya institui, concebe Lux ex tenebris (Figura IX): representação irradiante do verossímil, cujo esplendor dissipa a noite.

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No final do século XVII, a luz é o emblema ou cetro da razão a combater, coibir o obscurantismo. Eis que se consolidou entre nós um blefe, uma cínica e reluzente “história da verdade”18(FOUCAULT, 1994, p. 669; cf. HABERMAS, 2000). Oscar Wilde (2012) satiriza em O retrato de Dorian Gray: “Cínico é aquele que conhece o preço de tudo, mas não reconhece o valor de nada”.

Um dos préstimos inerentes ao Iluminismo “libriano” e à correlata (sunset) síndrome do escolhido é o de autenticar ou driblar “a verdade, e

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a verdade é o seu dom de iludir” (VELOSO, 1986). Veritas distribuída em pílulas de sábio ceticismo.

Silhueta cética que é artesã a sincretismo de cultos. Insultos sem verdades, juras, tipógrafos e saberes (substantivos materiais), só veredictos, juramentos, taquígrafos e métodos (substantivos formais) de conteúdo afônico, múltiplos de zero.

O ultra Iluminismo previu, confiscou, acasalou, esposou o dote ou luz etérea da certeza universal, padecendo, agora, de asfixiante, epistêmica e pós-moderna fotossensibilidade. Está longe de ser idílio, ou uma prosa honesta, que exala valores morais hígidos, elegância. É automação de gestos, fobias, ritos, rotinas..., abaixo da luminescência confidencial, oculta, restrita e notívaga, confinada em gabinetes, fossas, gavetas, porões, corredores, sótãos; nunca às claras.

A luz identificada com a razão libertadora propaga, exacerba, prolifera os anais e um signo onipresente do Iluminismo. Da contemporânea pira olímpica ao brasão argentino (imerso em simbologia revolucionária, coroado por labareda ou chama), do brilhante, dolarizado e universal “olho” maçônico (Figura X) à tocha da Liberdade iluminando o mundo, de Bartholdi — oferecida pela França aos estadunidenses em 1884 —, o triunfo da claridade, à verve iluminista, é usual nos traços de Goya, que eleva e poliniza uma tradição já hipotecada, saturada.

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Vide, outrossim, a paleografia e semiótica impecáveis do obelisco portenho, uma pirâmide solar, elevada e não crucificada que pulsa, externa, sinaliza entorno e graal illuminati.

Em 1812, quando a Espanha permaneceu sob a rédea estrita da interferência, julgo e domínio franceses, a Junta de Cádiz proclamara válvula ou vazão de escape apoteótica, uma Constituição liberal.19Goya, então, retoma a trilogia verdade-tempo-história (Figura XI), pintando Alegoria sobre a adoção da Constituição de 1812.

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O ressentimento e ativismo de Goya se tornam cada vez mais crédulos, aflitivos, desafiadores. E panfletários! A justiça e verdade umbilicais, em seu espírito de luz é a própria...

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