A convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e seu impacto no direito urbanístico brasileiro: as funções do Município

AutorJosé Antonio Apparecido Júnior
Páginas151-166

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1 Introdução

Este estudo1 pretende abordar a relação existente entre a entrada em vigor no Brasil da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o Direito Urbanístico, especialmente no que tange às novas atribuições dos Municípios na implementação das medidas de igualação trazidas no indigitado tratado. As diretrizes trazidas na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade, que incidem diretamente na formação e na leitura do Plano Diretor, principal instrumento de planejamento urbano à disposição do Poder Público para organizar a vida nas cidades, sofreram relevante impacto com os termos da nova norma incorporada aoPage 152 ordenamento nacional – especialmente considerando-se a qualificada estatura hierárquica de suas disposições. Estamos cientes ainda que boa parte dos Municípios brasileiros não tem obrigação de elaborar um Plano Diretor para a ordenação de seu território2 – mesmo essas comunas, contudo, devem obedecer aos mandamentos do Estatuto da Cidade e, agora, de maneira expressa, o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

2 A emenda constitucional nº 45/2 004 e o parágrafo 3º do artigo da Constituição Federal

A Emenda Constitucional nº 45, de 30 dezembro de 2004, inseriu no ordenamento jurídico brasileiro o § 3º do art. 5º da Constituição Federal3. Abstraindose das discussões acerca dos efeitos advindos de sua entrada em vigor sobre os tratados e convenções internacionais de Direitos Humanos já então vigentes no país, veiculou a reforma da Carta Política importante inovação no que toca à proteção de tais direitos no Brasil: a partir de daquele momento, ficou expressamente prevista no texto da Lei Maior a possibilidade de que um tratado ou convenção internacional versando sobre os Direitos Humanos entrasse no ordenamento jurídico brasileiro, com hierarquia jurídica formalmente equivalente à da própria Constituição Federal.

A colocação retro pode ser mais bem esclarecida: em uma leitura inversa, o reconhecimento expresso de tal possibilidade pela Carta Política – e aqui novamente nos afastamos do aprofundamento sobre a discussão acerca da hierarquia dos tratados e convenções internacionais de Direitos Humanos face o ordenamento jurídico nacional, haja vista o modesto desiderato deste estudo – tornou estrema de dúvida o status hierárquico, em termos normativos, de pelo menos uma espécie de tais diplomas: aqueles aprovados pelo procedimento do § 3º do art. 5º da Constituição. Ainda que a doutrina e a jurisprudência passem outras duas décadasPage 153 discutindo apaixonadamente a hierarquia dos tratados internacionais versando sobre Direitos Humanos em face do ordenamento pátrio, essa específica técnica de incorporação de tais diplomas pelo Congresso Nacional lhes garantirá esta especial condição.

Com efeito, a constitucionalidade material dos tratados internacionais sobre Direitos Humanos, dos quais o Brasil é signatário, não é motivo de controvérsia – o texto do § 2º do art. 5º da Carta Magna, instituído pelo Poder Constituinte Originário de 1.988, lá está para elidir esta discussão4. A questão que causou celeuma em nossos escritores e julgadores foi a situação formal desses diplomas normativos – a pirâmide normativa kelseniana parecia não ter encaixe perfeito para essa pedra.

Essa é, então, a maior inovação trazida pelo § 3º do art. 5º: classificou hierarquicamente tratados internacionais de Direitos Humanos aprovados com o procedimento e quorum qualificado que especifica como “equivalentes às emendas constitucionais”. E o que significa a expressão “equivalente”?

Cremos que a melhor linha de raciocínio a adotar aponta que, se tais instrumentos são “equivalentes” a emendas constitucionais, é de se concluir (utilizandose do mecanismo interpretativo do inclusio unius, alterius exclusio) que os mesmos não constituirão, de fato, emendas à Carta Política. Ainda assim, haja vista a expressa determinação do § 3º do art. 5º, terão formalmente a condição hierárquica das emendas constitucionais. Surge, dessa maneira, em conclusão, uma nova definição do que seja a “Constituição Formal” em nosso país: esta será doravante formada pelas normas materialmente e formalmente constitucionais que integrem o texto escrito da Constituição e pelos tratados internacionais de Direitos Humanos aprovados em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos respectivos membros. Tal nos parece ser o sentido da expressão “equivalente” do § 3º do art. 5º da Constituição Federal.

Tal reconhecimento tem repercussões de grande monta. Com efeito, por versarem sobre Direitos Humanos, tais tratados internacionais terão aplicação imediata (art. 5º, § 1º), sendo certo que, em virtude de estarem formalmente incor-Page 154porados ao texto da Constituição Federal, não serão objeto de deliberação propostas de emenda constitucional tendentes (isto é, que possam, ainda que de maneira reflexa, acarretar diminuição de seu âmbito de incidência e eficácia) a aboli-los (art. 60º, § 4º, IV). Mais: sob esse mesmo fundamento, mesmo havendo expressa previsão de “Denúncia” do tratado pelo Estado Parte no texto da Convenção (Artigo 48), parece-nos que tal procedimento não implicará a cessação de sua vigência na Ordem Jurídica Interna brasileira. Tais textos, por fim, poderão servir de norma objeto de cotejo com legislação hierarquicamente inferior, servindo de fundamento para sua declaração de inconstitucionalidade – se a razão do controle de constitucionalidade é garantir a supremacia da Constituição Formal, de modo a resguardar a sistematização hierárquica do ordenamento e a própria segurança jurídica da Nação, e o tratado internacional inserido no ordenamento brasileiro sob o procedimento do § 3º do art. 5º integra, como visto, a própria Constituição formal, nada mais lógico que a consequente possibilidade do controle de constitucionalidade sob seu fundamento.

A conclusão retro é relevante para o estudo do impacto da recém aprovada Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência nos Municípios do Brasil, especialmente no que tange ao Direito Urbanístico e aos planos diretores.

3 A convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e o estado democrático de direito

É o momento de relembrar alguns fatos. Como bem apontado por Carmem Lúcia Antunes Rocha “a Constituição Brasileira de 1988 tem, no seu preâmbulo, uma declaração que apresenta um momento novo no constitucionalismo pátrio: a ideia de que não se tem a democracia social, a justiça social, mas que o Direito foi ali elaborado para que se chegue a tê-los”.5 A ilustre autora, hoje Ministra do Supremo Tribunal Federal, analisa em seguida o art. 3º da Constituição Federal: “O art. 3º traz uma declaração, uma afirmação e uma determinação em seus dizeres. Declara-se ali, implícita mais claramente, que a República Federativa do Brasil não é livre, porque não se organiza segundo a universalidade desse pressuposto fundamental para oPage 155 exercício dos seus direitos, pelo que, não dispondo todos de condições para o exercício de sua liberdade, não pode ser justa. Não é justa porque plena de desigualdades antijurídicas e deploráveis para abrigar o mínimo de condições dignas para todos. E não é solidária porque fundada em preconceitos de toda sorte”.6

O desafio da sociedade brasileira é construir este novo Estado, justo, solidário, que forneça igualdade de condições a todos. Todos os esforços da Nação devem ser desenvolvidos a isso – há um enorme débito social a ser pago e é preciso que seja prontamente iniciada a ação para que tal seja, desde logo, diminuído.

Talvez, sob esse espírito, o Congresso Nacional, já utilizando a regra do art. 5º, § 3º da Constituição Federal, em 09 de julho de 2008, aprovou o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência7.

A Convenção, sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, doravante denominada simplesmente “Convenção”, foi adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em dezembro de 2006 e assinada por 197 países, incluindo o Brasil, em 30 de março de 2007. Seu declarado objetivo é de promover e de assegurar o exercício pleno de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais a todas as pessoas com deficiência8. Com tal finalidade, os países signatários promoverão alterações tanto no campo da legislação como no da administração interna –, com efeito, o artigo 4º da Convenção determina, entre outras obrigações, que os Estados Partes modificarão leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes que constituírem discriminação (item “1”, alínea “b”), e realizarão e promoverão pesquisas e desenvolvimento de produtos, serviços, equipamentos e instalações com desenho universal destinados a atender às necessidades específicas das pessoas com deficiência (item “1”, alíneas “f” e “g”). O teor de suas normas será mais bem analisado adiante. É preciso, antes de seguir na análise dos comandos trazidos em seu texto, colecionar outros elementos ao nosso plano de estudo.

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Retornemos, então, à nossa Constituição Federal de 1988. Observamos, neste passo, que seu texto é inaugurado com uma afirmação de suma importância: a de que o nosso País é um Estado Democrático de Direito9.

É possível, em grossos termos, dizer que um Estado Democrático de Direito é aquele que tem por finalidade garantir o respeito das liberdades civis, ou seja, o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Bem aponta José Afonso da Silva que “o texto da Constituição Portuguesa dá...

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