Pode um jurista que pensa como um negro interpretar o direito de forma objetiva?

AutorAdilson José Moreira
Páginas119-151
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CAPÍTULO V
PODE UM JURISTA QUE PENSA COMO
UM NEGRO INTERPRETAR O DIREITO
DE FORMA OBJETIVA?
As questões analisadas nos capítulos anteriores influenciam de
forma direta a forma como juristas brancos interpretam normas jurídi-
cas porque elas legitimam um tipo de percepção intelectual e política
da realidade que tem um caráter parcial. Mais do que isso, elas formam
as bases de uma perspectiva epistemológica que situa o jurista branco
em uma posição que o leva a assumir que todas as pessoas possuem a
mesma experiência social. Por esse motivo, eles acreditam ou levam as
pessoas a acreditar que as normas jurídicas podem ser interpretadas
exclusivamente a partir da lógica interna do Direito, que essa disciplina
contém todos os elementos necessários para a solução de problemas
jurídicos. A interpretação pode se resumir a então uma subsunção da
norma jurídica ao fato que ela pretende regular. Veremos porque essa
posição interpretativa impede o alcance da justiça racial, na medida em
que a raça aparece como uma mera particularidade individual sem re-
levância jurídica. Tendo em vista o caráter altamente problemático
dessas afirmações, precisamos investigar os mecanismos a partir dos quais
o discurso jurídico estabelece parâmetros para percepção da relevância
social da raça e do racismo.
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ADILSON JOSÉ MOREIRA
5.1 Como pensa um jurista branco?
Decidi ingressar em uma Faculdade de Direito em função do meu
envolvimento com o movimento negro. Disse antes que eu comecei a
atuar como militante na minha adolescência; estudar Direito me pareceu
uma boa forma de ter uma profissão rentável e poder atuar como um
agente de transformação social. Porém, essa possibilidade me pareceu
difícil de ser realizada quando finalmente consegui passar no vestibular.
Todos os meus professores eram brancos, a vasta maioria homens bran-
cos. Nenhum deles desenvolvia qualquer tipo de pesquisa sobre mino-
rias raciais; alguns desenvolviam projetos sobre minorias sexuais, mas
quase sempre sobre mulheres. Isso era o mais próximo que pude ter de
um professor progressista. Eles não tinham desenvolvido ou não tinham
conhecimento de qualquer tipo de perspectiva teórica elaborada com o
propósito específico de analisar direitos de minorias raciais. Eles não
sabiam nada sobre Direito Antidiscriminatório, nem podiam fazer uma
análise mais profunda do que seja discriminação. Não creio que a situa-
ção tenha mudado muito. Bem, não há razões para nos surpreendermos,
o racismo é algo invisível para a vasta maioria dos juristas brancos e
vários deles estão empenhados em manter essa invisibilidade.
Minhas aulas sobre Teoria da Constituição foram um tremendo
conforto. Pude ver minha realidade pessoal representada pela primeira
vez a partir das discussões propostas por um professor que se tornou meu
orientador até o doutorado. Tudo era discutido, inclusive os problemas
relacionados com uma forma de hermenêutica distante do contexto
social, ainda pensada de uma forma cientificista, ainda vista como uma
área jurídica que poderia prescindir de qualquer contato com outros
campos do conhecimento. As outras matérias sobre Direito Constitu-
cional foram decepcionantes. Estive, por exemolo diante de um jurista
famoso que fazia uma leitura dos direitos fundamentais como meros
direitos positivos, noção distanciada da dimensão objetiva deles. Ele não
desenvolvia qualquer discussão sobre como eles poderiam ser utilizados
para promover a inclusão de grupos marginalizados. Aliás, os direitos
fundamentais eram apresentados como categorias autorreferentes, sem
nenhuma relação lógica com princípios constitucionais. Era realmente
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CAPÍTULO V - PODE UM JURISTA QUE PENSA COMO UM NEGRO...
impossível pensar em uma hermenêutica que pudesse levar em conta as
desigualdades raciais quando nosso sistema de direitos era apresentado
dessa forma. Mas isso não era apenas uma característica desse curso:
todos eles eram homens brancos heterossexuais, de classe alta, que nun-
ca tiveram que pensar nosso sistema de direitos a partir da perspectiva
de um subordinado. Minha experiência como estudante de direito e
como um membro de uma minoria racial foi uma constante vivência de
alienação, a mesma coisa que ocorria com membros de minorias sexuais.
A posição neutra dos juristas brancos não tem neutralidade alguma: é
uma descrição do Direito como um tipo de discurso que trata apenas os
interesses dos membros dos grupos majoritários. Eu entendia inteira-
mente o sentimento dessas pessoas. Estávamos ouvindo o que esses
professores brancos heterossexuais diziam, ao mesmo tempo em que
lembrávamos todas as nossas experiências pessoais com o sistema jurídi-
co e que elas não refletem em quase nada o que eles nos falavam sobre
as funções do Direito.103
Coisas particularmente graves podem ocorrer quando juristas
brancos passam por uma Faculdade de Direito sem pensar o Direito a
partir de perspectivas múltiplas. Uma das mais problemáticas consequên-
cias é a constante reprodução da noção de que o liberalismo individua-
lista constitui um parâmetro suficiente para a interpretação da igualdade.
Eu me lembro da primeira vez que li a petição inicial da arguição de
descumprimento de preceito fundamental que questionava a constitu-
cionalidade de ações afirmativas elaborada por advogados do Partido dos
Democratas. Percebemos naquela peça processual toda uma argumen-
tação de que a raça não pode ser utilizada como um critério de trata-
mento diferenciado por não ser uma categoria que tenha validade
científica. Esse raciocínio parte do pressuposto que apenas critérios que
existem objetivamente podem ser utilizados como parâmetros para po-
líticas públicas. A classe social poderia ser base para políticas de inclusão
racial porque podemos identificar uma relação causal e objetiva entre
103 Para uma análise mais profunda da experiência acadêmica como uma experiência de
alienação, ver: GUNIER, Lani. Of gentlemen and role models. Berkeley Women’s Law
Journal, vol. 6, n. 1, pp. 93-106, 1990.

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