"Podem os privilegiados escutar?": provocacoes dos feminismos marginais a critica criminologica/"Can the privileged listen?": defiances by feminisms from margins to criminological critique.

AutorAndrade, Mail
  1. Uma provocação introdutória

    Interpelada pelo deslocamento analítico proposto no texto de Camille Barata (2018), a partir da provocação da antropóloga Paula Lacerda (2014) (1), questiono com as autoras: como pode o não subalterno, o privilegiado, escutar? É que, como referência Barata (2018), Lacerda (2014) leva a questão que orienta Gayatri Spivak--"pode o subalterno falar?"--para além e interroga a tentativa de "dar voz" aos grupos subalternizados. Para as autoras, não cabe às/os pesquisadoras/es conceder voz, mas, precisamente, ouvir. Não pretendo conferir uma resposta definitiva a esta questão, mas sim explorar as possibilidades e reflexões que surgem a partir desse deslocamento.

    Considerando que a posição da/o pesquisadora/o está marcada pela localização do seu lugar de fala em meio às imbricações de gênero, raça, classe, idade, etc., e entendendo, ainda, a criminologia crítica como um saber contra hegemônico tecido por sujeitos historicamente situados em local de privilégio, o meu objetivo, aqui, é saber se a crítica criminológica e os sujeitos deste conhecimento podem escutar/ouvir o que sujeitos subalternizados, das margens, estão dizendo e denunciando. Como o(a) pesquisador(a) em posição de privilégio pode - e, especificamente, na condição de mulher branca de classe média--, posso, sem a pretensão de "dar voz", mas, precisamente, ouvir? Não apenas os saberes situados nas margens, mas também àquelas que compõem as pesquisas criminológicas, neste caso, as mulheres que sofreram violência, suas demandas e anseios diante do aparato penal.

    Para tanto, em um primeiro momento, referenciarei as discussões sobre epistemologias feministas e localização de saberes, em especial acerca do ponto de vista feminista desde uma perspectiva decolonial. Aqui, enquanto pesquisadora, situo-me em meio às questões epistemológicas e desafios decoloniais.

    Em um segundo momento, tensionarei as conquistas do movimento feminista--a Lei Maria da Penha e as alterações legislativas nos tipos penais de violação sexual--, com o que as mulheres que sofreram estas violências afirmam buscar da intervenção estatal ao procurá-la, tentando, com isto, desenvolver "sensibilidades interseccionais" (2) (AKOTIRENE, 2019) que superem as fronteiras do que hoje se afirma ser um feminismo branco ou, ainda, uma esquerda punitiva. Para tanto, enfatizo não a dor infligida, mas a resistência histórica empreendida por distintos grupos de mulheres.

    A discussão é, antes de tudo, epistemológica, uma vez que a provocação a partir de Barata (2018) e Lacerda (2014) levam a questionamentos acerca do sujeito autorizado a construir saberes e se, nesta condição, será capaz de promover escutas responsáveis para avançar na crítica. Desta forma, e com as implicações epistemológicas da teoria do ponto de vista e de como a localização do sujeito importa para o conhecimento que constrói, espero contribuir com as discussões criminológicas críticas, cuja hegemonia no campo tem demonstrado dificuldade em escutar vozes ressonantes, e avançar nas reflexões sobre violências estruturais de maneira interseccional.

  2. Identidade(s) e localização: a radicalização epistemológica por meio dos feminismos situados às margens

    [...] este texto é um argumento a favor do conhecimento situado e corporificado e contra várias formas de postulados de conhecimento não localizáveis e, portanto, irresponsáveis. Irresponsável significa incapaz de ser chamado a prestar contas. (Donna Haraway, 1995, p. 22) Inicialmente, pontuo que optei por me referir a feminismos marginais (e não subalternos, por exemplo), porque entendo, seguindo as lições de bell hooks (1990), a marginalidade como um lugar de resistência e não apenas como um espaço de imposição de estruturas de opressão; um lugar, portanto, de oposição crítica à dominação. Segundo a autora, é por meio do sofrimento, da dor e da luta que se chega a este espaço (HOOKS, 1990, p. 235). Hooks (1990) escolhe as margens como um campo de abertura radical e, enquanto adepta da perspectiva do ponto de vista, chama aqueles que se propõem à formação da cultura contra hegemônica a identificar os espaços nos quais começaram o seu processo de (re)visão (HOOKS, 1990, p. 223).

    A "política da localização", como denomina bell hooks (1990), surge no bojo das discussões sobre epistemologias feministas, em um contexto de efervescência intelectual de mulheres, no qual feministas pensaram conceitos e criaram categorias para questionar a naturalização das diferenças de gênero, que alcançou a própria noção de ciência moderna e da construção de conhecimento, estes últimos acusados de servir como instrumentos de manutenção de poder. Desta forma, esta política sugere que, nós, pesquisadoras/es, enquanto responsáveis pela produção de conhecimento, situemos de onde falamos.

    Os debates sobre epistemologias feministas têm como grande referência a norte-americana Sandra Harding (1986), que se alinha à perspectiva do ponto de vista feminista. Rasurando as premissas científicas modernas de neutralidade e imparcialidade, as teorias do ponto de vista feminista partem de críticas ao androcentrismo e sexismo na esfera da produção do conhecimento para questionar o que pode ser conhecido, de que forma e por quem. Elas possuem como pressuposto que o conhecimento é social e historicamente situado/localizado, que as posições ocupadas por grupos marginalizados tornam possíveis olhares diversos e que, em razão disso, uma desvantagem social pode ser transformada em vantagem epistêmica, científica e política, na medida em que pessoas marginalizadas se tornam sujeitos de saber (HARDING, 1993, p. 7-8).

    Embora o ponto de vista feminista se oponha à pretensão de neutralidade científica como a conhecemos desde a modernidade (ou seja, masculina e branca) (3), as suas teorias visam, sim, uma objetividade científica. Sandra Harding (1993) afirma que o ponto de vista feminista requer uma objetividade forte que, por sua vez, leve em conta os prejuízos da pesquisadora, pois as experiências de vida serão sempre uma lente por meio da qual vemos o mundo e as nossas pesquisas (HARDING, 1993, p.). Para Donna Haraway (1995), a objetividade feminista "significa, simplesmente, saberes localizados" (HARAWAY, 1995, p. 18).

    Os aportes de Harding (1993, 1986), cuja teorização possibilita evitar uma postura objetivista na investigação científica que serve para ocultar crenças dos pesquisadores, e Haraway (1995), que convida a historicizar aquele que realiza a pesquisa e a localizar seu lugar de fala, são importantes para pensarmos que as epistemologias contra hegemônicas, de maneira específica as feministas, têm muito a informar à pesquisa criminológica crítica que se desenvolve no país.

    Para além destes aportes, há significativas discussões sobre epistemologias que radicalizam, ainda mais, tais problematizações. Os movimentos feministas negros, indígenas e de "terceiro mundo" (dentre os quais incluo os latino-americanos), ecoaram uma censura à centralidade conferida à categoria analítica do género nos feminismos hegemônicos do Norte Global e denunciaram um universalismo essencialista do feminismo pensado por mulheres brancas, cuja consequência é a invisibilização da experiência das mulheres que sofrem com múltiplas opressões, causadas por uma interseção de marcadores de diferença entre gênero, mas também de raça, classe e sexualidade, tais como as mulheres negras, indígenas, lésbicas, latino-americanas.

    Partindo destas observações, Yuderkys Espinosa-Miñoso (2014) defende o feminismo decolonial enquanto aposta epistêmica que deve contrapor-se às epistemologias feministas produzidas pelos centros. Trata-se de uma proposta que se proclama revisionista da teoria e proposta política dos feminismos, uma vez que considera grande parte da produção intelectual e política feminista ocidental, branca e burguesa, ou seja, produzida por mulheres que gozam de privilégio epistêmico graças às origens de raça e classe (ESPINOSA-MIÑOSO, 2014, p. 7). O feminismo decolonial, para a autora, realiza uma genealogia desde o pensamento produzido pelas margens por mulheres lésbicas, negras e indígenas, bem como dialoga com os conhecimentos gerados por intelectuais comprometidas em desconstruir a matriz das opressões múltiplas, assumindo um ponto de vista não eurocentrado e interseccional (ESPINOSA-MIÑOSO, 2014, p. 7).

    É desta forma que tais feminismos revisam problemáticas fundamentais do feminismo hegemônico e ampliam conceitos e teorias chave também do que se conhece como a teoria decolonial proposta por pensadores latino-americanos.

    Nesse sentido, para María Lugones (2014), a decolonialidade é uma prática que impõe que o gênero seja pensado como um (entre vários outros) eixo(s) que se intersecciona(m) com as opressões coloniais racializadas (além de capitalistas), e a tarefa da feminista decolonial é, pois, enxergar a diferença colonial e resistir a ela, epistemologicamente, recusando-se em apagá-la (4) (LUGONES, 2014, p. 948).

    Ochy Curiel (2014), reconhece o acúmulo dos trabalhos de Harding (1993, 1986) e Haraway (1995), estes últimos para quem serve, inclusive, como ponto de partida ético fundamental em qualquer investigação cientifica. Adverte, contudo, que, se quisermos pensar em epistemes próprias, a partir de nosso lugar na América Latina, devemos optar pelos rumos da decolonialidade, o que impõe a desconstrução do próprio conhecimento, considerando gênero, raça/etnia, classe, colonialidade e outros fatores como matrizes de dominação e a relação entre centros e periferias/margens no sistema-mundo (CURIEL, 2014, p. 53).

    Dialogando com os feminismos negros e seus aportes sobre a dinâmica da relação entre os múltiplos eixos de opressão, sem que se hierarquize um em detrimento dos demais, e com as noções de colonialidade de poder, ser, saber e de gênero (5) pensados no contexto da América Latina, Curiel (2014) propõe uma epistemologia feminista que parta da decolonialidade. De acordo com a autora, a proposta decolonial...

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