Poder Judiciário Brasileiro

AutorRoberto Basilone Leite
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho em Santa Catarina, Mestre e Doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Vice-Diretor da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina
Páginas147-172

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A proposta deste capítulo é avaliar o perfil do Poder Judiciário que o Estado brasileiro construiu ao longo da história, a fim de tentar, em seguida, compreender de que modo o ativismo judicial atua no âmbito desse poder. Nos capítulos anteriores, apontamos o conceito normativo de democracia deliberativa como o marco de referência que deve orientar e balizar o processo de transição política no Brasil e, em seguida, vimos que o Estado brasileiro foi dominado, ao longo de sua história, por governos não democráticos de tipo autoritário, que legaram à sociedade uma estrutura estatal, social e econômica de caráter patrimonialista, bacharelista e burocrático-formalista fortemente influenciada pela tradição hierárquica escra-vista, sobre a qual a Constituição de 1988 implantou o modelo democrático. Esse modelo herdado e essa tradição autoritária implicam enormes dificuldades para o desenlace do processo de transição para a democracia. Chegamos ao ponto em que cabe indagar: como essa história de quinhentos anos de autoritarismo refletiu na formação e evolução do poder judiciário brasileiro? Faremos, por isso, uma breve averiguação sobre o processo evolutivo que, iniciado em 1500, legou à sociedade brasileira, em 1988, um aparato judiciário dotado de certo perfil que praticamente inviabiliza o funcionamento de canais de comunicação com a esfera pública. O intuito, neste passo, é recolher os elementos históricos e sociológicos mais significativos para a composição de uma base antropológica teórica que nos permita passar ao problema principal do estudo, que consiste em saber em que medida o déficit democrático deliberativo do Estado brasileiro acarretou um déficit político de seu poder judicial ou, em outras palavras, até que ponto a justiça brasileira, nos moldes em que se encontra constituída em 1988, tem aptidão para desempenhar eficazmente sua função política institucional e como isso reflete em termos de déficit político institucional.

Em seguida, discorreremos sobre algumas noções elementares relativas à definição das funções institucionais que cabem ao Poder Judiciário no Estado demo-crático, pois esse rol de competências é que nos dará elementos para estabelecer

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os limites de seu papel político institucional. O capítulo seguinte será destinado à discussão sobre a judicialização da política e o ativismo judicial, incursão teórica necessária em face do objetivo de definir quais são as funções institucionais do aparato de justiça no Estado democrático deliberativo. Por que ela é necessária? Porque é justamente no marco da discussão relativa ao ativismo judicial que se situa o divisor de águas entre os dois modelos atuais mais representativos de Poder Judiciário democrático. A função institucional do judiciário, que precisamos definir para identificar se existe ou não um déficit político, abrange ou não decisões de conteúdo político? O mister a que nos propomos, consistente em esboçar o papel normativo do judiciário na sociedade democrática a partir da delimitação de suas funções típicas, nos levará, ao cabo, a optar pelo paradigma de um juiz de tipo politicamente ativista, jurisdicionalmente ativista ou nenhum dos dois? Por isso, não há como tangenciar essa questão, que abordaremos da seguinte forma: primeiro, trataremos em linhas gerais da questão da função judiciária, a partir da reconstrução das funções estatais na sociedade democrática à luz do modelo habermasiano; em seguida, introduziremos alguns comentários sobre a judicialização da política e o ativismo judicial, com foco no objetivo específico de tornar claro o papel que a doutrina ativista atribui ao juiz. Por fim, após ter sido averiguada a questão do ativismo judicial, retomaremos, na segunda parte do último capítulo, a tarefa de definir a função política institucional do Poder Judiciário no contexto democrático, ocasião em que concentraremos o foco sobre certos aspectos importantes da questão.

3.1. Formação do poder judiciário brasileiro

O modelo de Poder Judiciário vigente em 1988 no Brasil é o resultado da atuação das mesmas forças que definiram o perfil do próprio Estado brasileiro e, por isso, trata-se de um aparato judicial que foi moldado, desde o início, para dar conta de atender às necessidades de um Estado autoritário, patrimonialista e discriminatório e que, portanto, não está aparelhado para atender às exigências típicas de uma sociedade democrática. Basta relembrar que a) entre 1500 e 1822 o país era mera colônia cujo administrador local era subordinado ao governo de Portugal;
b) entre 1822 e 1889 esteve sujeito a monarcas cujo poder político se fundava em direito hereditário e que pertenciam precisamente à linhagem da família lusitana que dominava a colônia no período anterior; c) até 1888 a escravidão de trabalhadores era autorizada pelo sistema jurídico e d) entre 1889 e 1988, o país, durante quase metade desse período,1 foi comandado por ditaduras assumidas como tais. Considerando que, dos primeiros 488 anos de história, apenas em relação a 55 anos se poderia questionar ter havido algum vislumbre de democracia – que, de qualquer forma, como vimos no capítulo anterior, não chegou a efetivamente se instalar –, não há sequer como cogitar seriamente que a justiça brasileira pudesse

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ter sido organizada de modo a atender as expectativas de um regime democrático que nunca existiu. Ao contrário da América do Norte – para onde os imigrantes ingleses trouxeram considerável experiência democrática, que, de resto, continuou a ser desenvolvida nos séculos XIX e XX –, a América portuguesa formatou suas instituições políticas e jurídicas em sintonia com sua condição colonial, escravista e patrimonialista e, mesmo a partir de 1889, em sintonia com uma realidade social autoritária e discriminatória que permitiu a manutenção de um sistema político e jurídico violador de direitos e essencialmente injusto.

Nas primeiras três décadas da colonização, os portugueses não tinham interesse nem condições materiais de dar início à colonização do território brasileiro, que, por isso, servia como mero entreposto destinado à exportação da ibirapitanga, mais conhecida como pau-brasil. As normas jurídicas aplicadas até 1530 eram alvarás e cartas-régias do rei português. Em 1532, para afugentar franceses e espanhóis que tentavam se fixar nas regiões costeiras, d. João III deu início à colonização, com a expedição de Martim Afonso de Souza,2 que fundou a primeira vila, em São Vicente, no litoral paulista. Como ninguém queria se arriscar na aventura transatlântica, o rei ofereceu, àqueles que se dispusessem a se transferir para a colônia, a soberania sobre os territórios ocupados, mediante delegação da Coroa. Mesmo assim, apenas doze indivíduos, de pequena expressão social e econômica, apresentaram-se para a empreitada;3 o território brasileiro foi dividido em doze faixas horizontais, denominadas capitanias hereditárias. O sistema político-econômico das capitanias se assemelha ao feudalismo europeu: o capitão se instala no país com base em suas próprias forças e recursos particulares,4 porém recebe da Coroa poderes absolutos dentro da área apossada, ao passo que o monarca conserva os direitos de suserania. Trata-se, na verdade, de um sistema híbrido, que funde elementos do feudalismo, do escravismo ibérico e do mercantilismo nascente, do qual os lusitanos assimilam a prática do monopólio, por força do qual as colônias só podem comerciar com sua metrópole. Os três elementos constitutivos da organização agrária – e, portanto, da estrutura econômica – do Brasil colonial nos três primeiros séculos já estão aí presentes: o latifúndio, a monocultura (sobretudo da cana) e o trabalho escravo.5

Como a vida política, econômica e social no Brasil estava inteiramente alicerçada no trabalho escravo, quase toda a atividade jurídica dos dois primeiros séculos se destinava a administrar o conflito entre os colonos europeus e os nativos americanos e, a partir de 1520,6 a regular a incorporação de escravos africanos

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ao sistema. A partir de 1530, além dos alvarás e cartas-régias, passam a vigorar também as Ordenações e decretos baixados pelo monarca português, denominados cartas de lei, regimentos e provisões. O sistema de capitanias não era eficaz para consolidar o domínio da Coroa portuguesa, sobretudo em face das investidas fran-cesas na costa brasileira. Por isso, a 17 de dezembro de 1548, d. João III assina uma série de regimentos por força dos quais cria o Governo Geral do Brasil e instala o primeiro corpo funcional da Colônia, cujos principais cargos eram: o governador geral – cujo primeiro titular foi Tomé de Sousa –, o ouvidor geral, o provedor-mor e o capitão-mor da costa.7 Essa grande expedição, que aporta em Salvador em 1549 e instala ali a capital da colônia, traz o primeiro magistrado a atuar no Brasil: o ouvidor geral Pero Borges. Vieram também, na ocasião, um almoxarife dos mantimentos, um mestre de fortificações, escrivães da provedoria, dos contos e do almoxarifado, grande quantidade de burocratas subalternos, mecânicos e artesãos,8 um tesoureiro real, seis jesuítas, soldados, colonos e criminosos degredados de Portugal.9

As funções administrativas e judiciárias se confundiam: o ouvidor geral era responsável pela resolução judicial dos litígios e aplicação das punições legais, mas também pela administração fazendária e pela chefia militar. As decisões do ouvidor geral eram irrecorríveis, exceto em alguns casos para os quais era previsto recurso à Casa de Suplicação de Lisboa. Da mesma forma, aos provedores incumbia a gestão administrativa da fazenda e das alfândegas, mas também o julgamento dos litígios relativos à tributação, sesmarias e taxas aduaneiras. A implantação do governo geral e a aplicação das Ordenações na colônia enfraqueceram os donatários e a justiça local, mas não afetaram o clero, porque seus aldeamentos só...

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