O poder no contrato de trabalho ? diretivo, regulamentar, fiscalizatório, disciplinar

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas806-857
CAPÍTULO XX
O PODER NO CONTRATO DE TRABALHO
— DIRETIVO, REGULAMENTAR,
FISCALIZATÓRIO, DISCIPLINAR
I. INTRODUÇÃO
Um dos mais importantes efeitos próprios ao contrato de trabalho con-
siste, conforme já indicado no capítulo anterior, no poder empregatício. Em
suas diversas dimensões — diretiva, regulamentar, scalizatória, disciplinar
—, esse poder concentra um conjunto de prerrogativas de grande relevo
socioeconômico, que favorecem, regra geral, a gura do empregador, con-
ferindo-lhe enorme in uência no âmbito do contrato e da própria sociedade.
Na verdade, o fenômeno do poder, em suas diversas áreas e projeções,
é um dos mais relevantes e recorrentes na experiência histórico-social do ho-
mem. Em qualquer relação minimamente constante (e mesmo em inúmeros
contatos apenas episódicos) entre duas ou mais pessoas ou entre grupos
sociais mais amplos, o fenômeno do poder desponta como elemento central.
Seja na dimensão estritamente interindividual, seja na dimensão que se es-
tende cada vez mais ao universo societário, o poder surge como componente
decisivo da experiência humana.
No contexto empregatício manifesta-se uma das dimensões mais impor-
tantes do fenômeno do poder no mundo contemporâneo. De fato, ao se saber
que a relação de emprego constitui a relação de trabalho mais signi cativa do
sistema econômico ocidental inaugurado há pouco mais de duzentos anos,
depreende-se a relevância que tem, para a própria compreensão da atual
sociedade, o conhecimento acerca do fenômeno do poder empregatício. Na
verdade, essa dimensão especí ca do poder sofre os efeitos da con gura-
ção global do fenômeno no conjunto da sociedade (o contexto democrático
ou autoritário mais amplo da sociedade in ui na estrutura e na dinâmica do
poder internas ao estabelecimento e à empresa). Do mesmo modo, o tipo de
con guração do poder empregatício também cumpre importante papel no
avanço e solidi cação do processo democrático (ou autoritário) no conjunto
mais amplo da sociedade envolvida.
Por todas essas razões, mesmo o operador jurídico preocupado em se
debruçar sobre os aspectos técnico-jurídicos dessa especí ca dimensão do
807C弼膝菱疋 尾微 D眉膝微眉肘疋 尾疋 T膝樋簸樋柊琵疋
poder não pode descurar-se de lhe perceber as projeções e re exos sociais,
efeitos muitas vezes decisivos à própria compreensão de sua estrutura e
dinâmica meramente jurídicas(1).
II. PODER EMPREGATÍCIO: CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO
1. Conceituação
Poder empregatício é o conjunto de prerrogativas asseguradas pela or-
dem jurídica e tendencialmente concentradas na gura do empregador, para
exercício no contexto da relação de emprego. Pode ser conceituado, ainda,
como o conjunto de prerrogativas com respeito à direção, regulamentação,
scalização e disciplinamento da economia interna à empresa e correspon-
dente prestação de serviços(2).
A doutrina não se utilizava da expressão poder empregatício para se
reportar ao fenômeno aqui em exame. Preferia produzir referências próprias
àquilo que consideramos as diversas faces ou dimensões do mesmo fenô-
meno, quais sejam, poder diretivo, poder regulamentar, poder scalizatório,
poder disciplinar. Não obstante essa antiga tradição (hoje já relativamente
superada), é sem dúvida vantajoso, do ponto de vista teórico e prático, apre-
ender-se, em uma especí ca denominação (poder empregatício ou poder
intraempresarial), a integralidade de um mesmo fenômeno que apenas se
desdobra, no plano operacional, em dimensões e manifestações variadas.
Poder Empregatício versus Poder Hierárquico — A doutrina, contu-
do, já se utilizou de expressão de caráter geral para designar o fenômeno
aqui examinado. Trata-se da denominação poder hierárquico.
Hierárquico seria o poder deferido ao empregador no âmbito da rela-
ção de emprego consistente em um conjunto de atribuições com respeito à
direção, regulamentação, scalização e disciplinamento da economia inter-
na à empresa e correspondente prestação de serviços. O poder hierárquico
abrangeria todas as demais dimensões do fenômeno do poder no contexto
empresarial interno (assim como a novel expressão poder empregatício).
(1) O tema do poder já tem sido amplamente examinado por este autor em outras oportuni-
dades. A esse respeito ver o primeiro capítulo da obra Democracia e Justiça. São Paulo: LTr,
1993 (“Poder e Justiça: a Questão do Controle Sobre o Judiciário”) e o livro O Poder Empre-
gatício. São Paulo: LTr, 1996, cujo primeiro capítulo trata inclusive da evolução do tratamento
teórico acerca do poder na Filoso a Política e Ciência Política.
(2) Os pontos iniciais do presente capítulo, em especial os estudos acerca do conceito e di-
mensões do poder empregatício, seus fundamentos e sua natureza jurídica foram retirados de
nossa obra anterior, O Poder Empregatício (LTr), já citada, para onde remetemos o leitor, sem
necessidade de novas referências.
808 M樋弼膝眉備眉疋 G疋尾眉匹琵疋 D微柊毘樋尾疋
Embora essa larga abrangência possa conferir à velha denominação
um lado funcional (isto é, prático), ela não esconde a face autoritária e retró-
grada — portanto equívoca — inerente à ideia de “hierárquico(3).
Tal expressão, a nal, carrega-se de rigidez incompatível com qualquer
processo de democratização do fenômeno intraempresarial de poder. Trazida
ao Direito do Trabalho por inspirações administrativistas ou institucionalis-
tas já superadas há longa época pela mais arejada teoria justrabalhista, a
expressão, mesmo hoje, não deixa de evocar uma lembrança severa, impla-
cável e hirta do fenômeno do poder na empresa. Como bem apontado por
Arion Sayão Romita, a hierarquia “...importa um poder de senhoria do supe-
rior em face do inferior, do qual este não pode unilateralmente livrar-se”(4).
Não é por outra razão que alguns juristas já tendem a considerar essa noção
fundamentalmente como mero rescaldo do velho corporativismo(5).
Por todos esses fundamentos, é inevitável concluir-se que o lado prá-
tico, funcional, do epíteto perde-se em decorrência do equívoco losó co e
teórico subjacente à noção de poder hierárquico.
De qualquer modo, esse lado prático poderia ser atendido pelas simples
expressões poder intraempresarial ou poder empregatício, de que seriam
manifestações especí cas e combinadas os chamados poderes diretivo,
regulamentar, scalizatório e disciplinar. Assim, considera-se mais acertado
referir-se ao fenômeno global do poder no âmbito da relação de emprego
pela expressão genérica poder empregatício (ou se se preferir, poder
intraempresarial), em vez de poder hierárquico.
2. Caracterização
O poder empregatício divide-se em poder diretivo (também chamado
poder organizativo), poder regulamentar, poder scalizatório (este também
chamado poder de controle) e poder disciplinar.
Como será visto a seguir, as duas dimensões do poder intraempresa-
rial que têm alcançado certa amplitude, consistência e identidade próprias,
a ponto de justi carem, paci camente, sua designação como modalidades
especí cas do poder empregatício, são os poderes diretivo e disciplinar.
(3) Hierarquia, na origem, traduz a nal “a ordem das coisas sagradas, isto é, dos entes e dos
valores supremos”. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filoso a. São Paulo: Mestre Jou,
1982, p. 474.
(4) ROMITA, Arion Sayão. O Poder Disciplinar do Empregador. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1983, p. 46.
(5) Nesta linha, MAGANO, Octavio Bueno. Do Poder Diretivo na Empresa. São Paulo: Saraiva,
1982, p. 114.

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