O Poder Normativo da Justiça do Trabalho

AutorIves Gandra Martins Filho
Ocupação do AutorMinistro do Tribunal Superior do Trabalho. Mestre em Direito Público pela UnB e Professor dos Cursos de Pós-Graduação do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS)
Páginas11-65

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1. Conceito de poder normativo

Na concepção montesquiana da tripartição dos poderes do Estado, de acordo com as funções típicas de legislar, administrar e julgar, atribui-se ao Poder Legislativo a competência para elaborar as leis pelas quais a sociedade será regulada.

No moderno sistema de democracia representativa, os representantes eleitos pelo povo deliberam no Parlamento sobre as normas que serão estatuídas para regular a convivência social, respeitando, por um lado, os limites impostos pela existência de direitos humanos naturais (que não cabe ao Estado criar ou suprimir, mas apenas reconhecer e garantir), e, por outro lado, a expressão da vontade da maioria (buscando o máximo de consenso nas sociedades plurais, compostas de fragmentações étnicas, culturais, linguísticas, religiosas, ideológicas)1.

Ao Poder Judiciário compete exclusivamente, dentro de tal concepção, a aplicação das normas aos casos concretos, interpretando as leis existentes, no exercício da função jurisdicional: dizer do direito aplicável (juris dicere).

Assim, a norma jurídica, cujos atributos de generalidade, abstração, hipoteticidade e coercibilidade se encontram nas leis elaboradas na assembleia congressual da nação, adquire concretude no momento em que a hipótese nela prevista ocorre, e o interessado na proteção que a norma representa recorre ao Poder Judiciário para obter a aplicação da sanção da lei, uma vez reconhecido seu conteúdo protetivo àquele caso concreto.

O dinamismo da vida moderna, exigindo decisões rápidas para os problemas sociais, econômicos e políticos, somado ao gigantismo das assembleias legislativas, cuja necessidade de albergar número crescente de representantes, em função do crescimento populacional, acaba comprometendo a celeridade no processo legislativo, conduziram à atribuição de poderes legiferantes ao Poder Executivo (ainda que em caráter excepcional).

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No Brasil, o decreto-lei (Constituição de 1967) e a medida provisória (Constituição de 1988) são os exemplos típicos do exercício de Poder Normativo primário pelo Executivo, inovando na ordem jurídica, mas dependendo da ratificação posterior pelo Congresso Nacional. Já os decretos, resoluções, portarias constituem formas secundárias de normatividade expedida pelo Poder Executivo, de vez que tais instrumentos normativos estão jungidos à mera regulamentação das leis existentes, possibilitando sua aplicação e executoriedade.

Já a atribuição de Poder Normativo primário ao Judiciário apenas se encontra na Justiça do Trabalho, como instrumento de composição dos conflitos coletivos de trabalho.

Prevista constitucionalmente desde 1946, a competência normativa da Justiça do Trabalho (CF/46, art. 123, § 2º; CF/67, art. 142, § 1º; CF/88, art. 114, § 2º) implica a possibilidade do Judiciário Trabalhista, nos dissídios coletivos, criar novas condições de trabalho, além daquelas mínimas já previstas em lei.

A atribuição desse Poder Normativo à Justiça do Trabalho se explica pelo dinamismo das relações econômico-trabalhistas, cuja rápida evolução e alteração nas condições da prestação de serviços exige que a consequente regulamentação jurídica do novo contexto socioeconômico seja também rápida.

A defasagem entre a norma e o fato social que deve regular, em consequência da alteração da realidade laboral, é fonte de conflito entre os interesses da classe trabalhadora e do empresariado. Se os patrões, espontaneamente, não alteram as condições de trabalho, beneficiando o operariado, este utiliza o instrumento de que dispõe para obter a mudança normativa: a greve.

A incapacidade do Poder Legislativo editar, com a celeridade necessária, leis que estabeleçam as condições adequadas da prestação de serviços nas mais variadas atividades laborais faz com que se atribua ao Judiciário Trabalhista essa competência, de modo a evitar o conflito social decorrente do embate entre o capital e o trabalho nas relações coletivas laborais2.

Assim, o Poder Normativo da Justiça do Trabalho opera no branco da lei3.

Os Tribunais Trabalhistas, ao apreciarem e julgarem os dissídios coletivos, não aplicam norma legal preexistente, mas criam novas condições de trabalho para cada categoria profissional. As sentenças normativas prolatadas pelas Cortes Laborais têm, pois, natureza constitutiva e não condenatória, revestindo-se dos mesmos atributos da norma jurídica:

a) generalidade — aplica-se a todos os membros de uma determinada categoria profissional numa determinada base territorial (efeitos erga omnes e não

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apenas inter partes — até aqueles que não pertenciam à categoria no momento da prolação da sentença normativa serão por ela atingidos, se ingressarem na categoria durante sua vigência);

b) abstração — deduzida mediante comandos abstratos (cláusulas), à semelhança de artigos de lei, fixa genericamente as normas pelas quais se regerão as relações de trabalho numa determinada categoria;

c) hipoteticidade — previsão antecipada de que interesse prevalecerá em caso de conflito, quando ocorridas as circunstâncias descritas no comando normativo (v. g., se houver trabalho em condições nocivas à saúde, então deve ser pago o adicional de insalubridade; se a empregada ficar grávida, então terá direito à estabilidade provisória no emprego); e

d) coercitibilidade — imposição de sanção, por meio de sentença condenatória em ação de cumprimento (a natureza constitutiva da sentença normativa faz com que sua execução seja feita mediante processo de conhecimento e não executório, pois a decisão judicial coletiva se coloca ao lado das demais normas jurídicas abstratas, a serem aplicadas e interpretadas pelo Poder Judiciário).

Pode-se, pois, definir o Poder Normativo da Justiça do Trabalho como o poder constitucionalmente conferido aos Tribunais Trabalhistas de dirimirem os conflitos coletivos de trabalho mediante o estabelecimento de novas e mais benéficas condições de trabalho, respeitadas as garantias mínimas já previstas em lei.

Dessarte, as sentenças normativas prolatadas nos dissídios coletivos têm o caráter próprio de uma lei particular, aplicável a determinada categoria profissional numa dada base territorial4. São fruto de juízo de equidade em que o julgador, seguindo os cânones do art. 114 do CPC de 1939, “aplicará a norma que estabeleceria se fosse legislador’’5.

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2. As origens do poder normativo da justiça do trabalho

A atribuição de um “poder normativo’’ à Justiça do Trabalho brasileira teve como paradigma a “Carta del Lavoro’’ do regime fascista instaurado na Itália por BENITO MUSSOLINI, na qual se conferia à magistratura do trabalho italiana o poder de dirimir os conflitos coletivos de trabalho, mediante fixação de novas condições laborais (Lei n. 563/1926, art. 13).

A introdução, no Brasil, da solução jurisdicional para os conflitos coletivos do trabalho já vinha sendo propugnada, mesmo antes da Constituição de 1937, por aqueles que vivenciavam a inoperância das “Comissões Mistas de Conciliação’’ (Decreto n. 21.396/1932), que apenas podiam, no caso de impasse, propor a arbitragem facultativa para o conflito.

Projeto de organização da Justiça do Trabalho, com atribuição de poder normativo, foi apresentado à Câmara dos Deputados nos primeiros meses de 1937, sustentando-se a necessidade da arbitragem obrigatória como forma eficaz de solução dos conflitos coletivos. A adoção do sistema catalizou-se com o golpe do “Estado Novo’’ quando, a 10 de novembro de 1937, GETÚLIO VARGAS impõe nova Constituição ao Brasil, redigida por FRANCISCO CAMPOS nos moldes da Carta Política polonesa, fortalecendo o Poder Executivo e instaurando no Brasil um Estado Corporativista.

A filosofia do Corporativismo, bem estampada na própria imagem do fascio (feixe de galhos reunidos, simbolizando a força que provém da união), tem como fundamento a colaboração e não a luta de classes para o desenvolvimento do Estado. Assim, as associações de trabalhadores — os sindicatos — são tidos como órgãos do Estado para regulamentação das condições laborais, visando à proteção dos interesses dos trabalhadores.

Tendo os sindicatos sua origem mais remota nas antigas corporações de ofício da Idade Média, uniões de artesãos que desenvolviam o mesmo ofício e que, para evitar a concorrência ou a exploração, regulamentavam pormenorizadamente o exercício da profissão (preços, ascensão funcional, salários, quantidades produzidas), o nome passou a designar o fenômeno, uma vez que se recordava o sistema fechado de relações laborais, rigidamente atrelado à disciplina estatal.

Com efeito, a reação ao corporativismo medieval se havia consubstanciado na liberdade de exercício de profissão, garantida pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, feita durante a Revolução Francesa (1789), quando foram abolidas as antigas corporações medievais (1791).

A liberdade trabalhista assegurada...

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