Organização do Poder Político: o estado constitucional em Niklas Luhmann

AutorRafael Lazzarotto Simioni
Páginas329-349

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1 Introdução

Diferentemente do caráter descentralizado1 dos centros de pesquisa para a ciência, dos bancos centrais para a economia, das escolas e universidades para a educação e das igrejas para a religião, a organização do poder político encontra suas referências sistêmicas em uma instância central, com abrangência politicamente delimitada através do conceito de soberania2. Nessa perspectiva, o Estado é entendido como um sistema de organização do poder político. Uma organização que simboliza a unidade da diferença entre direito e política.

Naturalmente, existem muitas perspectivas teóricas que negam a existência real de uma diferenciação entre os sistemas político e jurídico. Política e direitoPage 330 normalmente são tratados como se fossem um só sistema, identificado por meio da ideia de Estado. Com efeito, o Estado recebe tradicionalmente um conceito simultaneamente político e jurídico. Mas, ao contrário de provar uma falta de diferenciação entre política e direito, o conceito de Estado designa precisamente o paradoxo da unidade dessa diferença.

Obviamente há relações de interdependência entre política e direito. Afinal, a aplicação das decisões judiciais depende dos aparatos políticos organizados pelo Estado. E ao mesmo tempo, a pretensão de vinculação coletiva das decisões políticas depende da concentração do poder mediante a sua legitimação jurídica3.

No que segue, procuraremos explicitar a ideia e a localização do Estado dentro do desenho teórico da Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann.

Para tanto, essa investigação enfrentará a questão da fundamentação da política e do direito na Idade Média, de modo a explicitar os paradoxos que levaram Hobbes e Hume a deslocar o problema da fundamentação recíproca entre direito e política para a questão do direito de resistência. Em um segundo momento, a pesquisa introduz a ideia da soberania na forma de um paradoxo, cujo desdobramento deu ensejo à concepção moderna de Estado e à consequente clausura operativa do direito e da política na modernidade. E é exatamente dessa história de desdobramento criativo de paradoxos que surge o Estado Constitucional como símbolo da unidade da diferença entre política e direito.

Sustentamos, portanto, uma diferenciação radical entre os sistemas político e jurídico na modernidade, cuja unidade se mantém, contudo, por meio da simbolização simultaneamente política e jurídica do Estado Constitucional.

O método por meio do qual podemos observar esse tipo de dinâmica comunicativa da sociedade é a observação de segunda ordem da teoria dos sistemas autopoiéticos de Niklas Luhmann. E é importante sublinhar que se trata apenas de um modo de observação, não de uma proposição normativa que pretende solucionar algum problema concreto. Trata-se, antes, de uma forma de entendimento dessa complicada relação entre direito e política contemporânea, tendo o Estado Constitucional como símbolo – ou como acoplamento estrutural – dessa relação.

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Essa questão dos paradoxos se torna importante para o direito, especialmente porque ela toca na questão da fundamentação da validade do direito, cuja história pode ser recontada na forma de uma história de desdobramentos criativos de paradoxos, para os quais, o Estado Constitucional constitui a mais atual – mas não a última – estratégia de resolução.

2 Fundamentação da política e do direito na Idade Média

Seguindo a perspectiva teórica de Niklas Luhmann, a diferença entre política e direito pode ser observada no tipo de comunicação que cada um desses sistemas produz na sociedade.

A política utiliza a comunicação do poder como seu meio de comunicação, enquanto o direito utiliza, como seu meio de comunicação, as normas jurídicas. Tanto o poder político quanto o direito se referem ao mesmo problema de referência: a correspondência entre a ação de alter e a ação de ego. Mas enquanto o poder resolve esse problema através do uso simbólico da ameaça de força física e outros recursos para vincular coletivamente, o direito resolve esse problema simbolizando expectativas normativas imunes a frustrações.

Política e direito referem-se, portanto, à comunicação de expectativas comportamentais. Ambos têm como problema de referência a correspondência entre uma ação de alter e uma ação de ego. Mas cada um produz modos diversos de solução para esse mesmo problema de referência: a política produz vinculação; o direito generaliza simbolicamente essa vinculação na forma de expectativas comportamentais.

E, precisamente, essa combinação da comunicação política com a comunicação jurídica possibilita à política produzir decisões coletivamente vinculantes, ao mesmo tempo em que possibilita para o direito a produção de expectativas normativas simbolicamente generalizadas.

Essa diferença entre poder político e direito manteve-se bastante clara por todo o período da Idade Média. Segundo Luhmann4, a fundamentação da validadePage 332 do direito na ideia de direito natural foi a responsável por isso. Fundamentada no direito natural, a validade do direito não poderia depender do poder político do Império, da Igreja ou de outras autoridades terrenas5. E por isso, a sociedade medieval não dispunha das condições de possibilidade para simbolizar a unidade da diferença entre o direito e a ordem política dos Impérios.

Apesar das consolidações do direito romano, o sistema jurídico convivia nesse período com uma multiplicidade de direitos que, diferentemente de hoje, não se aplicavam para todos os estratos sociais. Havia um direito feudal, um direito das cidades, um direito dos reis, um direito canônico e também um direito civil profano6. Essa estratificação de direitos correspondia também a jurisdições específicas para cada tipo de direito. Existia, portanto, uma multiplicidade de direitos, separados segundo o critério dos estratos sociais, que correspondia a uma equivalente multiplicidade de jurisdições.

E, por esse motivo, no século XVI, começa a aparecer o problema de que não se poderia mais conceber o espaço soberano de um império sem um direito que valesse para todos, nem o espaço jurisdicional do direito sem a capacidade de imposição generalizada78.

A complexidade crescente da sociedade exigiu então dos Estados do início da Idade Moderna a unificação do direito válido em seus respectivos territórios, tornando possível a unificação também daquela multiplicidade de jurisdições. Só assim o problema da soberania pôde ser resolvido, pois a manutenção de direitos diferentes para estratos diferentes, submetidos também a jurisdições diferentes, tornava impossível um controle central e, portanto, uma submissão generalizada à soberania do império.

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O direito unificado – com apenas uma jurisdição correspondente – permitiu então a organização e o controle da produção de normas sob uma instância central: o Estado moderno. Com um controle político centralizado da jurisdição e com a unificação dos direitos regionais – predominantemente consuetudinários – o Estado moderno passou a exercer uma função de produção legislativa.

Surge, então, um “conceito político de lei”9. E isso significa que a distinção entre política e direito, mantida durante toda a Idade Média, começa a ganhar outro significado social. A razão política já não pode mais ser entendida como sinônimo de validade jurídica, mas, ao mesmo tempo, a política e o direito encontram sua unidade e sua fundamentação última no direito natural.

O paradoxo que a diferença entre política e direito produz é que somente do ponto de vista político se pode fundamentar tanto a política quanto o direito no direito natural. Pois do ponto de vista jurídico, somente se pode fundamentar a política e o direito na razão política. Esse paradoxo manteve-se escondido na semântica política da época através do problema do direito à resistência10. A questão era a de como justificar juridicamente uma resistência ao próprio direito, isto é, como justificar de modo juridicamente válido uma resistência ao próprio direito válido.

3 O direito de resistência ao direito em Hobbes e Hume

Para Hobbes, o direito à resistência encontrava fundamento na necessidade da paz. Se cada um procurasse impor seu próprio direito, segundo a sua própria razão na tural, então o direito não garantiria a paz. Viver-se-ia em um “estado de natureza”, no sentido de Hobbes.11 A solução então foi construída na forma da ideia de autorização, conferida pelos súditos ao poder soberano de impor o direito de modo arbitrário.

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Sob a semântica do problema do direito à resistência, Hobbes esconde precisamente o paradoxo da fundamentação recíproca entre política e direito, isto é,

o paradoxo da fundamentação política do direito e da fundamentação jurídica da política. Em Hobbes, esse paradoxo se mantém escondido através da questão do direito à resistência. E ao mesmo tempo, o paradoxo se desdobra através da ideia de autorização dos súditos ao soberano.12

Mas o paradoxo ficou desdobrado, e não resolvido, pela semântica política inaugurada por Hobbes. A questão de como o direito pode justificar pretensões jurídicas opostas sem recorrer a uma validade politicamente assegurada continuou presente na semântica política da época. Em outras palavras, o problema do paradoxo da justificação jurídica de pretensões jurídicas opostas permaneceu nas autodescrições da política. E, precisamente, em razão do “arbitrário” no poder soberano de Hobbes, no século XVIII e XIX vai surgir a ideia de que a função do Estado está na garantia da liberdade conforme ao direito: o Estado de Direito.

A concepção de Hobbes a respeito do Estado ilustra a dificuldade de se distinguir política e direito...

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