Poder Punitivo e Feminismo: percursos da criminologia feminista no Brasil/Punitive Power and Feminism: Paths of Feminist Criminology in Brazil.

AutorMartins, Fernanda

Feminismo(s) e criminologia(s), de novo? (1) Pode-se questionar a que se propoe novamente uma escrita a partir do dialogo entre essas duas perspectivas. Talvez aqui esteja o esforco de reler as contaminacoes que forjam aproximacoes e distanciamentos desses dois sentidos da radicalidade politica, que nesse trabalho se apresentam como investigacao e escrita sobre a construcao da criminologia feminista no Brasil.

Assim, este trabalho visa a apontar o que se reconhece como alguns percursos iniciais do pensamento da "criminologia feminista" no Brasil. Ao estabelecer esse caminho, formula-se a seguinte questao: qual e o percurso desenvolvido para construcao da criminologia feminista que se desenvolve no Brasil e suas possiveis relacoes com o poder punitivo?

Para responder eventual pergunta sobre o metodo, propoe-se seguir os passos de Sandra Harding (2) e pensar numa epistemologia feminista, aqui disposta desde os rastros, as pegadas, os tracos que as leituras ensaiaram, mais proxima da leitura da feminista ciborgue de Donna Haraway (3) e das dinamicas de construcao fornecidas pelos feminismos como defendido por Margareth Rago (4). Segue-se, portanto, os preceitos de Maria Mies em que "a 'verdad' acerca de una teoria no depende de la aplicacion de ciertas reglas o metodos, sino que reside en la potencialidad que esta tenga para orientar los procesos de la practica dirigidos hacia la humanizacion y la emancipacion." (5)

A primeira direcao da-se pelo reconhecimento das obras produzidas no Brasil que se autoidentificassem como criminologia feminista; criminologia critica e feminismo; criminologia critica e violencia contra mulher e poder punitivo e violencia de genero. O caminho tracado para se pensar certa historia do pensamento criminologico-feminista no Brasil passa, portanto, pelas proprias fontes referenciadas nestes livros, abrindo-se as modalidades de compreensao das hipoteses. Direcao adicional estabelecida como mecanismo de leitura das fontes foi mapear o campo de escritas que trabalhassem com violencia contra mulher, criminologia feminista e violencia de genero, utilizadas como palavras-chaves escolhidas para realizar a pesquisa nas bases de teses e dissertacoes do CNPq e CAPES (6).

Nesse sentido, a afirmacao de Marcia Tiburi estabelece um ponto elementar e irredutivel da presente escrita: "a sobrevivencia do espirito esta na subjetividade desobediente." (7) Desobediencia em definir um metodo tradicional, em propor novos debates e em jamais ignorar as contribuicoes anteriores que sao os pontos que definem a propria possibilidade de trilhar novos caminhos. E somente entao a partir daquilo que ja se pensou e produziu "que podemos comecar a desenvolver uma politica de leitura, que ira abrir o texto na direcao de um horizonte ainda desconhecido, para que este possa ser utilizado sem escusas." (8)

E, portanto, a partir das provocacoes dos pensamentos feministas que as concepcoes de ciencia e do proprio pensamento, implicadas nas complexidades da transnacionalidade e interdisciplinaridade, vao desestabilizar as marcas das masculinidades presentes na construcao do conhecimento cientifico.

  1. Entre a Criminologia Critica no Brasil e as Criticas Feministas as Criminologias

    Sobre a historia do pensamento criminologico, pode-se dizer que ela perpassa desde a construcao do poder punitivo medieval, aos elementos de constituicao do Estado moderno, as teorias classicas de formulacao do Direito Penal como estrategia de controle social nas sociedades "civilizadas" e os dialogos biologico-racistas do positivismo europeu e suas necro-traducoes (9) as terras expropriadas pela colonizacao. Do mesmo modo, reelabora o pensamento norte das Escolas Sociologicas atraves de certa heranca dos debates da psicanalise, produz teorias em contato com o contexto da contracultura, reconstitui sua perspectiva a partir das analises marxistas de exploracao, produz novas percepcoes a partir do disciplinamento e das tecnologias de controle dos corpos e se multiplica a partir dos debates da diversidade diante das denuncias de criminalizacao e vitimizacao do precariado e/ou de grupos vulneraveis. (10)

    Dentro deste espectro, o conceito de "criminologia critica" trabalhado pela/os mais destacada/os criminologa/os do Brasil, da America Latina e dos paises do Norte nao e pacifico, mas poderia ser captado algo de comum em seu sentido de critica criminologica - podendo ser chamada de criminologia critica, criminologia radical, criminologia da reacao social, criminologia da libertacao, criminologia marginal, criminologia cautelar, entre outras. Esses pontos de encontro parecem se estabelecer em tres denuncias centrais: 1. A critica economica da exploracao capitalista atraves do sistema de producao e do aprisionamento; 2. A percepcao da reacao social aos processos de criminalizacao e vitimizacao marcados pela seletividade (de raca, de genero, de classe, de territorializacao etc.) e 3. A necessidade de analises micro e macro para compreensao dos processos de controle social (formal e informal), criminalizacao e encarceramento [em massa].

    O presente trabalho, portanto, parte desses tres elementos como constitutivos ao pensamento criminologico, sem jamais ignorar as inumeras criticas formuladas desde o reducionismo conceitual da criminologia ao campo da sociologia, aos mecanismos de producao de dados como finalidade criminologica (11), o negro brado critico (12) ao racismo das pesquisas e os espectros de branquitude e/ou branquidade (13) que operam a constituicao do saber na e da criminologia, bem como o sexismo identificado atraves das vozes autorizadas a falar sobre o campo criminologico. (14)

    Assim, tendo a criminologia como o "conjunto de conhecimentos, de diversas areas do saber, aplicados a analise e critica do exercicio do poder punitivo", cujo objetivo se estabelece em "explicar sua operatividade social e individual e viabilizar uma reducao em seus niveis de producao e reproducao da violencia social" (15), aparece a critica feminista realizada aos seus saberes como elemento central para identificar as nuances do que pode ser reconhecido no Brasil como criminologia(s) feminista(s).

    Parte-se, num primeiro momento, dos movimentos de contracultura da decada de 1960 e 1970 nos Estados Unidos e Europa, nos quais os movimentos sociais serao reconhecidos como instrumentos essenciais para a producao do conhecimento e especialmente para interrogar as narrativas dos processos de criminalizacao e vitimizacao. Sera atraves de uma tecitura denunciadora que as feministas - ao questionarem o local da mulher no direito penal, diante do reconhecimento da seletividade das mulheres consideradas criminosas e/ou vitimas - vao apontar os elementos de "honra" e os marcadores de genero e de raca como determinantes sobre a figura da mulher no ambito penal e extra-penal de controle social. Momento esse que podemos reconhecer como as primeiras aberturas da criminologia ao feminismo.

    As primeiras contaminacoes entre esses dois sentidos politicos - feminismo e criminologia - vao reconhecer que o poder punitivo se veste de jogos de linguagem legitimadores e legalizadores (16) em que o "discurso nao [sera] simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominacao, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar." (17) E atraves da cooptacao das mulheres como duplamente criminosas - sempre na dupla excecao - que o direito penal sustenta sua ordem patriarcal, seja operando sobre o feminimo sua perpetuacao como vitima - suplicante de "amparo" e incapaz do agir - ou em transgressora, fora da lei masculina e das expectativas de genero. Enfim, sobretudo, excluida, senao sequestrada por estas duas figuras pre-estabelecidas no processo de producao do discurso das agencias de punicao.

    Nos trajetos e debates feministas e/ou do movimento de mulheres encontram-se dissensos constantes e nuances especificas a partir das criticas realizadas e dos enfrentamentos reconhecidos como centrais para as lutas politicas suscitadas. A marca da pluralidade vai ser tambem registro dos debates de violencia contra a mulher - como vitima ou como autora - e dos caminhos de pesquisa, de leituras, de frentes de problematizacao e de imbricacao com o poder punitivo. Faz-se tal afirmacao para justificar que os campos das criminologias feministas vao ter nao so alguns elementos proprios, mas tambem vao se autodenominar dessa forma mesmo quando se estabelecem como um campo situado a partir de argumentos e conclusoes distintas.

    Para propor certo arranque para as perfomances da criminologia feminista no Brasil, toma-se como ponto de apoio alguns percursos que vao se tocar de maneira mais ou menos significativa na producao desse saber, sem, contudo, propor uma "origem" ou designar "inicios". No Brasil um dos caminhos de resistencia encontrado pelas feministas se deu a partir dos processos de institucionalizacao de suas demandas. (18) Desde a participacao na Constituinte 1988 e da ampla participacao das mulheres no processo de redemocratizacao brasileira, algumas frentes do movimento apostaram suas reivindicacoes na negociacao e na participacao da tomada de decisao do Estado diante das possibilidades de producao legislativa e exigencia de politicas publicas especificas. Uma das frentes que se consolidou atraves da estrategia institucional foi a luta pela erradicacao da violencia sexual e domestica contra as mulheres (19). Nao a toa que essa batalha foi e continua sendo o principal campo de interlocucao entre a criminologia critica e os feminismos no que se materializa como "criminologia feminista".

    Nesse sentido, o lema "o pessoal e politico" exigiu movimentar a rigidez das limitacoes constituidas entre as esferas publicas e privadas no que concerne os problemas que envolvem as violencias domesticas, assim como o deslocamento sobre o proprio conceito de publico. E atraves dos numeros (20) que insistem em demonstrar as feridas da violencia de genero que se passa a apostar...

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