Poder e Saber em Edipo Rei/Power and knowledge in Oedipous the king.

Autorde Oliveira Morais, Ricardo Manoel

Introducao

A obra de Michel Foucault e marcada por uma serie de caracteristicas peculiares que, antes de tudo, devem ser esclarecidas. Primeiramente, marcase pelo fato de nao ser sistematica, isto e, o autor trata de um determinado tema em mais de um momento, retomando-o em outro, algumas vezes, inclusive, com significado diverso. Alem disso, suas nocoes envolvem certas criticas que sao extremamente peculiares em relacao a tradicao que o antecede, como, por exemplo, sao suas concepcoes de saber (realidade intrinsecamente ligada ao poder), direito (nao se resume a uma ciencia, a lei ou eventuais teorias soberanas, mas sao um complexo de praticas, saberes e relacoes de poder que se instauram de modo a gerar efeitos de verdade), verdade (sao efeitos que, normalmente, emergem de uma determinada pratica social e detem um carater contingente). Ainda, a obra foucaultiana, pelo menos a parte que este trabalho intenta investigar, parte da negacao de um sujeito de conhecimento absoluto e neutro que, por meio de suas categorias fundamentais, e capaz de alcar formas de saber e verdades absolutas. Um de seus principais objetivos e, justamente, acabar com o "mito" ocidental da independencia entre poder e saber, isto e, para ele o poder gera saber e o saber legitima as praticas de poder, com uma relacao de autoimplicacao.

Estas reflexoes, conforme mencionado, se fazem presentes em mais de um momento na obra de Foucault e, devido a extensao delas, nao se pode, em um artigo, examina-las em toda sua completude. Assim, foi feita a opcao de examinar a leitura de Foucault acerca da relacao entre poder e saber na pela Edipo Rei de Sofocles. Por mais que Foucault tenha dado ao menos seis variacoes de sua leitura da tragedia, este artigo ira se deter nas conferencias realizadas pelo autor na Pontificia Universidade Catolica do Rio de Janeiro, publicadas com o titulo A verdade e as formas juridicas e no curso de 1971 ministrado no College de France, Lecons sur la volonte du savoir.

A analise de Foucault acerca de Edipo Rei e bastante interessante e, em se tratando de pensamento critico, vale a pena ser exposta e analisada, tanto em relacao a questao literaria quanto em relacao a questao filosofica. Tambem nesta perspectiva de analise, um trabalho muito relevante foi realizado por Marco Antonio Sousa Alves, em Direito, poder e saber em Edipo Rei de Sofocles. Foucault concede a esta peca um carater de "contra-historia". Isso porque nao a trata como o genero de literatura que instaurou a verdade acerca do inconsciente no Ocidente, mas como a obra que, ao expor um conjunto de praticas e rituais judiciarios de poder que visavam constituir a verdade, evidencia a ligacao entre poder e saber.

Assim, de modo a evidenciar estes elementos do pensamento do filosofo, examinando-os no ambito da tragedia de Sofocles, o artigo primeiramente fara uma apresentacao esquematica do que o saber implica para Foucault, o modo como ele se relacionado com o poder, como gera seus efeitos de verdade, como se constitui nas praticas sociais e, ainda, o fato de que as praticas mais claras para se evidenciar tal processo sao as judiciarias. Apos, sera evidenciada a leitura de foucaultiana de Edipo Rei, nao como sendo uma peca que apresenta verdades acerca do inconsciente e da teoria psicanalitica como expoe Freud, mas que, na verdade, e o relato que melhor exprime a relacao entre poder e saber no ocidente, mesmo nao tendo sido esta a interpretacao que se sobressaiu na tradicao.

  1. Analitica do poder e sua relacao com o saber

    Michel Foucault, em sua obra, propoe uma critica constante a conceitos universais, principalmente no que diz respeito aos saberes, a verdade e ao sujeito de conhecimento. Para ele, os absolutos sao formas de dominacao, inventadas pelo homem em um momento de presuncao por vontade de poder (Cf. Nietzsche). Os absolutos hierarquizam os conteudos recortados pelos ramos de saber, preferindo alguns e marginalizando outros, segundo criterios arbitrariamente estabelecidos por eles proprios. Um exemplo desse fenomeno e a chancela cientifica que, ao conferir uma suposta unicidade e universalidade a conteudos esparsos do saber, acaba por preterir outros, tidos como nao cientificos, na medida em que nao foram estabelecidos por criterios que a propria ciencia julga passiveis de constituir verdades. O proprio Foucault, em A arqueologia do saber, denuncia que as

    "(...) ciencias constituidas, sistematicas e formalizadas se equivocam ao relegar os saberes, considerados como nao cientificos, para o terreno do erro e da ilusao. A hipotese e que justamente tais saberes constituem o solo de formacao de quaisquer ciencias. O referencial da estrategia foucaultiana sera toma-los como ponto de partida para o estabelecimento dos limites da verdadeira ciencia" (CANDIOTTO, 2010, p.46). Por essa razao, o pensamento nao deve colocar os conteudos do saber e da historica segundo um pressuposto metafisico ou principios de verdade absolutos, segundo os quais tanto o conhecimento quanto os valores caminham em pregresso, em direcao ao absoluto universal, tracando o conhecimento a partir disso, ignorando os conteudos marginalizados. Ao contrario, Foucault defende uma especie de "contra-historia", que ele denomina genealogia, que opera de modo a avaliar os acontecimentos como corpo do devir, mantendo os fatos ocorridos em sua dispersao, demarcando seus acidentes, erros e falhas, sem hierarquizar os conteudos historicamente localizados. O que se faz, efetivamente, e analisar os saberes a partir de suas condicoes de possibilidade de emergencia, examinando tanto aqueles aos quais se atribuiu um carater hegemonico quanto os marginalizados. Preconizase uma historia da descontinuidade, nao como uma "teoria descontinua", mas como analitica que compreende o fundo de poder nas mascaras dos saberes e da verdade. O metodo e este:

    "(...) em vez de partir dos universais como grelha de inteligibilidade das "praticas concretas", que sao pensadas e compreendidas, mesmo que se pratiquem em silencio, partir-se-a dessas praticas e do discurso singular e bizarro que lhes supoem, "para passar de certa forma os universais pela grelha dessas condutas"; descobre-se entao a verdade verdadeira do passado e a "inexistencia dos universais". (...); por exemplo, suponhamos que a loucura nao existe, ou antes, que nao passa de um falso concreto (mesmo se uma realidade lhe corresponde). "Desde logo, qual e pois a historia que se pode fazer desses diferentes acontecimentos, dessas diferentes praticas que, aparentemente, se ordenam com esse algo suposto que e a loucura?" E que fazem com que ela acaba por existir como loucura verdadeira aos nosso olhos, em vez de permanecer perfeitamente real, mas desconhecido, desapercebido, indeterminado e sem moral. Ou desconhecida, ou nao conhecida: a loucura e todas as coisas humanas nao tem outra alternativa, a menos que sejam singulares" (VEYNE, 2009, p.21). Foucault preocupa-se com a questao do poder e sua influencia na historia. Nao sendo a historia uma forma de saber que se pauta em absolutos, mas algo que e gerado por um fundo de conflitos ou lutas entre conteudos historicamente contingentes, nao pode outro elemento que nao o poder ditar os bastidores da historia. Necessario ressaltar que em todas essas formas de saber e instancias historicas assumidas como metafisicas nao ha nada alem de contingencia, sendo o poder uma rede que liga tais contingencias segundo interesses obscuros, legitimados por efeitos de verdade, sendo o poder e a verdade realidades que se autoimplicam e autolegitimam.

    Assim, a forma como se deve analisar o poder no pensamento de Foucault e diferente de como se faz na tradicao, isto e, poder nao e um contrato ou pacto social, ou algo que se liga aos meios de producao (superestrutura da estrutura economica). O poder e algo que se da nas relacoes, jamais como uma substancia ou essencia que pode ser cedida ou delegada. Para analisar o poder, nao se pode adotar a perspectiva do legalismo ou da legitimidade, mas apreende-lo em suas extremidades, onde ele se consolida em praticas de intervencao local, inclusive violentas. Alem disso, o poder nao e do ambito da otica da decisao, de quem o detem, mas consiste em levar em consideracao as intencoes internas as praticas sociais, observando seus efeitos externos, nao teoricos. Ainda, analisar o poder nao se trata de observar porque as pessoas querem dominar ou o que elas buscam, mas o que ocorre no momento da sujeicao e seus processos perpetuos, que dirigem gestos e comportamentos. Em terceiro lugar, o poder nao deve ser concebido como dominacao linear ou piramidal, de um sobre os demais, pois nao e algo que se detem ou cede, mas que circula, flui, opera em cadeia, constituindo-se em praticas e relacoes. Logo, sao todos alvos e protagonistas. Entretanto, isso nao significa que o poder seja bem distribuido, partindo de um centro e se prolongando ate os elementos atomisticos da sociedade. Ele deve ser analisado de forma ascendente, partindo dos mecanismos infinitesimais, e cada qual possui sua propria historia, trajetoria, tecnicas e taticas. Somente em seguida analisa-se como os mecanismos de poder adquiriram solidez e tecnologia proprios, estendendo-se a construcoes cada vez mais gerais. Logo, nao sao as ideologias que sustentam as bases das redes de poder em seus pontos capilares, ainda que os dispositivos de poder sejam acompanhados de ideologias (Cf. FOUCAULT, 1999; 1988; MORAIS, 2013).

    Por essas razoes, Judith Revel (2005) observa que o pensamento genealogico do autor marca-se pela analise de dispositivos que designam os operadores materiais do poder, suas praticas e formas de "assujeitamento". Foucault insiste em nao ocupar-se da soberania, dos aparelhos de Estado e das ideologias que o acompanham, mas dos mecanismos de dominacao, voltando sua escolha metodologica para a investigacao dos dispositivos, cuja natureza e heteronoma, pois dizem respeito a discursos, praticas, instituicoes e taticas...

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