Podera a justica criminal ser emancipatoria? Reflexoes a partir do pensamento de Boaventura de Sousa Santos/Can Criminal Justice be emancipatory? Reflections based on the thought of Boaventura de Sousa Santos.

AutorFelix, Criziany Machado
  1. Consideracoes Iniciais

    Penso que so ha uma solucao: a utopia. A utopia e a exploracao de novas possibilidades e vontades humanas por via da oposicao da imaginacao a necessidade do que existe, so porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem direito de desejar e por que merece a pena lutar. Boaventura de Sousa Santos (2002a: 278) Negar o potencial emancipatorio do Direito no ambito da Justica Criminal, ainda que o Direito Penal, no seu amago, seja regulatorio por excelencia, e negar a existencia da utopia, e negar a busca de um Direito Penal menos avassalador (sistema penal alternativo) ou de "algo melhor que o proprio direito penal" (alternativa ao sistema penal) (1).

    Reconhecemos e corroboramos o valioso contributo do pensamento criminologico critico que apontou as mazelas, nao apenas do Direito Penal, mas do sistema penal em sentido amplo (2), nao obstante, entendermos que existe a possibilidade de abordagens contra-hegemonicas na Justica Criminal. Nosso trabalho demonstra que podera haver, nesta esfera judicial, espaco para desafiar concepcoes de interesses dominantes em relacao ao poder/dever estatal de punir. Este desafio caminha em direcao a emancipacao social (3), que, no contexto analisado, emerge da postura critica de alguns magistrados (4).

    Cumpre ressaltar que Boaventura de Sousa Santos (2003: 42) distingue dois tipos de emancipacao social, fina e espessa, que se diferenciam em razao do "grau e a qualidade de libertacao ou de inclusao social", sem olvidarmos que ambos os conceitos sao melhor identificados em termos especificos, na medida em que pode "perfeitamente dar-se a circunstancia de aquilo que funciona como concepcao de emancipacao fina para uma determinada luta cosmopolita numa dada sociedade e num dado momento historico funcionar como concepcao de emancipacao espessa para uma outra luta cosmopolita noutro contexto geografico-temporal" (Santos, 2003: 42).

    Buscamos a possibilidade de um atuar juridico emancipatorio, no sentido descrito por Celso Luiz Ludwig (2001: 15) ao se referir ao saber juridico emancipatorio, "originariamente porque denuncia o sentido ideologico do discurso cientificista e teoricamente porque permite a producao de uma justica emergente contra-hegemonica".

    Efetuamos uma consulta, concernente a jurisprudencia criminal brasileira, nas paginas oficiais dos Tribunais de cupula (Superior Tribunal de Justica e Supremo Tribunal Federal) e Tribunais de Justica dos Estados, para verificar a viabilidade de nossa premissa e comprovar a hipotese por nos aventada de que podera haver espaco para contra-hegemonia na Justica Criminal.

    As discussoes jurisprudenciais, feitas atraves da metodologia de analise qualitativa de dados, com vistas a consecucao do objetivo delineado neste ensaio, foram enquadradas em quatro topicos, consoante a natureza da problematica apresentada, embora todos partam da ideia que sao os operadores do direito que poderao dar cunho emancipatorio ao mesmo. Os dois primeiros dizem respeito a decisoes isoladas e os dois ultimos versam sobre decisoes que foram sendo tomadas de forma reiterada, assumindo um corpus jurisprudencial robusto na direccao da emancipacao na esfera da Justica Criminal.

    No primeiro caso apresentamos uma decisao envolvendo questoes inerentes a segregacao e as relacoes de genero, que rompe com a logica do fascismo do apartheid social, porquanto permite que um condenado saia nao apenas da zona selvagem, o carcere, como da zona "instituida" para o "masculino", a fim de cumprir sua pena junto de seu filho, em interpretacao extensiva de dispositivo que concedia o beneficio de prisao domiciliar apenas as mulheres condenadas com filho menor ou deficiente fisico ou mental.

    A segunda situacao estudada versa sobre uma postura de contrahegemonia ao fascismo do apartheid social e financeiro, pois discorre sobre uma decisao pioneira que, em decorrencia de uma interpretacao analogica in bonam partem, concedeu um privilegio legal, destinado apenas aos chamados crimes do "colarinho branco", aum praticante de furto tentado, culminando o feito com a extincao de sua punibilidade, baseada em um texto de doutrina com discurso claramente emancipador.

    O terceiro contexto analisado, relacionado com o fascismo do apartheid e da inseguranca, e a questao da tensao criminalizacao/emancipacao dos Movimentos Sociais, no qual centramos nos movimentos agrarios, que lutam contra-hegemonicamente, isto e, de baixo para cima, observando a nocao de dupla face do Poder Judiciario, que se apresenta em conflito interno de varias ordens, oscilando entre os interesses da maioria da populacao local e global e os interesses capitalistas, evidenciando-se em varias areas, como a questao agraria e ambiental.

    Por ultimo, discorremos sobre uma tematica que se pode apresentar como transversal aos diversos fascismos estruturais do Direito Penal moderno ocidental, dependendo seu enquadramento das razoes que motivaram a condenacao dos encarcerados que almejam remir sua pena, qual seja: a questao da possibilidade de remicao da pena por meio do estudo, que passou a ser prevista expressamente na Lei de Execucao Penal apenas a partir de 29 de Junho de 2011, com a alteracao dada pela Lei no. 12.433. Ate entao, o beneficio era aceito, ha mais de duas decadas, pelo Judiciario em virtude da analogia inbonam partem a remicao em razao do trabalho, este sim previsto legalmente. Foi por meio das reiteradas decisoes judiciais e posterior edicao da Sumula no. 341 do Superior Tribunal de Justica sobre a viabilidade da admissibilidade do estudo formal como causa de remissao da pena, que se oportunizou a emancipacao em sede de Execucao Penal, alcancando uma regulacao mais digna, demonstrando que ainda se pode ter expectativas quanto ao Poder Judiciario tornar-se mais inclusivo e redistributivo.

    O artigo que segue, nao obstante interagir com outros autores e demais trabalhos de Boaventura de Sousa Santos, propoe-se, prioritariamente, a rediscutir o texto "Podera o direito ser emancipatorio?" (Santos, 2003), revisitando-o a partir de ensaio posterior denominado "Para alem do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes" (Santos, 2007a) e transpondo as ilacoes feitas para um dialogo, com a jurisprudencia na esfera penal, processual penal e de execucao penal, orientado pelo seu conceito de constitucionalismo transformador (Santos, 2009b, 2010).

    Apresentamos a possibilidade de uma mudanca no Sistema de Justica Criminal dar-se por meio do ativismo judicial com potencial constitucional transformador; isto e, atraves de uma postura judicial de compromisso com uma sociedade mais justa, pautada nos direitos e garantias exarados nos valores estruturais da Constituicao Federal de 1988, denominada "Constituicao Cidada", e simbolo do processo de redemocratizacao do Brasil, sem, contudo, olvidar que essa mesma Carta Magna, nas palavras de Salo de Carvalho (2003: 195), "alavancou um sistema criminalizador, conformado com um modelo penal programatico", por ele denominado de "Constituicao Penal Dirigente" (Carvalho, 2003: 72; 2004: 195).

    Assim, entendemos que, nao obstante a tensao descrita, o Magistrado, que tenha por escopo assumir uma postura emancipatoria, podera encontrar no constitucionalismo brasileiro o suporte para essa tomada de decisao. O foco do trabalho e, portanto, o sistema estatal formal de Justica Criminal representado pelas lentes de magistrados criticos nos Tribunais brasileiros.

  2. A matriz teorica de Boaventura de Sousa Santos e a modernidade ocidental juridico-penal

    A modernidade ocidental (5), objeto de analise que assume papel central em grande parte da producao intelectual de Boaventura de Sousa Santos, (1988, 1989, 1990, 1991, 1995, 1998, 2002a, 2002b, 2002c, 2003, 2006, 2007a, 2007b, 2009a, 2010) fundou-se, conforme o proprio descreve, sob dois pilares: o da regulacao e o da emancipacao (6), podendo-se compreender esta tambem como um espaco de luta por uma melhor regulacao, uma regulacao mais digna, mais inclusiva. Com o escopo de discutir os termos nos quais se pauta o debate acerca da relacao entre ambos os pilares, o autor discorre sobre o papel da Ciencia e do Direito e as formas como se articulam para configurar o paradigma da modernidade ocidental e seu percurso, (Santos, 1988, 1989, 1990, 1991, 1995, 1998, 2002a, 2002b, 2002c, 2003, 2006, 2007a, 2007b, 2009a, 2010).

    Descreve a existencia de uma "relacao de cooperacao e circulacao de sentido entre a ciencia e o direito, sob a egide da ciencia" (Santos, 2002b: 52), onde a ordem social criada esta pautada no conhecimento cientifico, as normas juridicas resultam das descobertas da ciencia sobre a vida na sociedade, especialmente no que alude ao pensamento social do seculo XVIII e XIX (Santos, 2002b: 54).

    Subjacente a tensao existente entre os pilares da emancipacao e da regulacao encontra-se a dicotomia invisivel apropriacao/violencia (7) que a fundamenta (Santos, 2007a: 04). Essa forma de pensamento moderno ocidental foi denominada por Boaventura de Sousa Santos de "Pensamento Abissal" e implica que

    as distincoes invisiveis sao estabelecidas atraves de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo "deste lado da linha" e o universo "do outro lado da linha". A divisao e tal que "o outro lado da linha" desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e e mesmo produzido como inexistente (Santos, 2007a: 03). A visivel tensao entre regulacao e emancipacao, vigente "deste lado da linha", pauta-se epistemologicamente na disputa do conhecimento cientifico ou nao cientifico direcionado para a comprovacao da verdade na dialetica verdadeiro/falso e juridicamente na assuncao do direito estatal oficial ou internacional como unicos oficialmente validos na dialetica legal/ilegal. "O outro lado da linha" e invisibilizado mediante processos de apropriacao e/ou violencia, seu universo e considerado inexistente, o conhecimento ali produzido e tido como...

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