Estado Social e Estado Policial: Da desigualdade radical à exigência de uma nova ética

AutorJosé Ricardo Cunha
Ocupação do AutorDoutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
Páginas13-34
Estado Social e Estado Policial:
Da desigualdade radical à exigência de uma nova ética
José Ricardo Cunha5
I) POLÍTICA E POLÍCIA
Aristóteles dizia que o homem é um ser naturalmente político e por isso
vive em conjunto. Dizia também que aquele que não vive com os outros ou
é um deus ou um selvagem.6 Como ser político, o homem constrói sua vida
em torno da polis. Em latim, a palavra grega polis costuma ser dita civitas, sig-
ni cando não apenas cidade, mas também cidadania. O termo polis expressa,
assim, a densidade do que signi ca essa vida em comum, esse viver com os
outros que é inevitável a todos os mortais. A polis não é apenas a cidade, mas
a Cidade-Estado. Aquela que pela política organiza a força, para que esta seja
juridicamente instrumentalizada e, de efeito, não se renda à barbárie própria da
selvageria. Do grego polis resulta a palavra “política” e também a palavra “polí-
cia”. Se a política busca as condições para uma vida em comum, a polícia busca
as condições para a preservação da vida em comum. Claro que isso assim o é,
em tese. Na vida prática, tanto o sentido da política como o sentido da polícia
podem ser corrompidos em função da busca de interesses particulares postos
acima dos interesses públicos ou, ainda, pelo predomínio de uma razão ins-
trumental cegamente pragmática. Mas o fato dessas distorções ocorrerem não
implica o desaparecimento do sentido normativo dos termos política e polícia.
Ambos estão etimologicamente vinculados à ideia de busca e manutenção das
condições da vida em comum.
A política, ao menos conforme sua tradição clássica, liga-se ao conceito de
cidadão, cidadania, e, portanto, de administração pública ou de administração
da coisa pública. Contudo, administrar a coisa pública não é um ato apenas
5 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina; Professor Adjunto da Universidade Es-
tadual do Rio de Janeiro e Professor Adjunto da FGV Direito Rio. É também o coordenador do Núcleo
de Mediação de Con itos Comunitários e Facilitação de Diálogos da FGV Direito Rio, com apoio do
programa Paci car e parceria com o Viva Comunidade.
6 –Cf. ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 4-5.
14 Mediação de Conflitos Comunitários e Facilitação de Diálogos: Relato de uma experiência na Maré
burocrático que se encerra em si mesmo. Essa administração tem um  m, um
telos. Diz Aristóteles: “Mas não é apenas para viver juntos, mas sim para bem vi-
ver juntos que se fez o Estado.”7 Administrar a polis signi ca buscar as condições
para um bem viver de todos os cidadãos, de todas as pessoas. Ainda segundo
Aristóteles, o bem viver entre concidadãos traz uma exigência de igualdade, isto
é, que cada um tenha a sua vez, o que, para esse  lósofo, se traduz em justiça
e honestidade.8 A administração pública possui, nessa linha de raciocínio, um
compromisso transcendental com a justiça, ou seja, com a repartição de bens,
encargos e imunidades. Esse é o sentido de uma justiça distributiva, preocupada
em equiparar pessoas e grupos a uma espécie de linha média da sociedade.
De certa forma, os dois sentidos dados por Aristóteles à exigência de igual-
dade, quais sejam, justiça e honestidade, articulam-se com as duas palavras que
decorrem do termo grego polis: política e polícia. Enquanto a política deve ser
guardiã da justiça, a polícia deve ser guardiã da honestidade. Mas não é só isso: a
ação da política deve ser pautada pela honestidade, bem como a ação da polícia
deve ser pautada pela justiça. Os quatro termos obedecem a uma reciprocidade
direta e cruzada. Assim como não pode haver uma política sem justiça e hones-
tidade, também não pode haver uma polícia sem justiça e honestidade. Com
efeito, num plano prescritivo, política e polícia estão interligadas a partir das
mesmas exigências morais. Contudo, não é assim que acontece na prática. O
texto que se segue apresentará alguns argumentos que pretendem enfatizar essa
ruptura fática, ou trauma moral, que por diversas vezes ocorre entre o sentido
prescritivo e o sentido descritivo de política e polícia.
II) DIREITOS SOCIAIS E O CUSTO DOS DIREITOS
Todos nós sabemos que os direitos humanos resultam, em última instân-
cia, de uma luta contra a arrogância e a opressão do poder. Trata-se de erigir um
campo de proteção a pessoas e grupos sociais em face de um domínio, no mais
das vezes, revestido de postura o cial. Embora o poder, por de nição, possa,
ele não deve fazer tudo o que pode. O poder do Estado ou do capital, mesmo
que juridicamente organizado, deve conhecer limites éticos que salvaguardem a
liberdade, a autonomia e a dignidade de pessoas e povos.
Dentro dessa premissa geral acima exposta, os direitos humanos foram
a rmados gradativamente na história. É conhecida a classi cação dos direitos
7 ARISTÓTELES. Op. Cit. , p. 53.
8 ARISTÓTELES. Op. Cit., p. 63.

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