A política

AutorMarcella Furtado de Magalhães Gomes
Páginas202-387
3. A POLÍTICA
Não se faz política com a moral, mas também não se faz
sem ela.1
Malraux
Como frisamos anteriormente, a Ética aristotélica
conduz o leitor à polis. A realização de si é possível pelo
contato com o outro, pois o hábitat do homem é o da
convivência social.
A existência humana tem como fim a atualização da obra
específica que nos define enquanto seres. A função peculiar
do homem é a racionalidade. Viver é estar em movimento e
nossa obra é a atividade da razão ou segundo a razão. Mais
do que isso: como o tocador de flautas, podemos exercer
nossa obra ou podemos exercê-la bem. A excelência da
atividade racional é o fim e a ratio essendi de cada ser humano.
A racionalidade atua pela captação da forma inteligível
imanente ao sensível, contida na sensação ou na fantasia, o
que nos permite a identificação, a explicação e a
transformação dos entes. Contudo, a atuação cognitiva
somente é possível quando a razão limita o apetite. Assim, a
captação inteligível, em relação a nós, significa também a
possibilidade de, a partir da identificação do meio
circundante, selecionar um curso de ação que apresente
consequências, pelo conhecimento antecipadas, mais
agradáveis ou mais adequadas à atividade da razão.
Entretanto, a excelência ativa da razão, segundo Aristóteles,
não é atingível pelo homem individual.
Nossa razão é logos enhuloi. Sua atividade não pode ser e
não é separável do corpo, condiciona-se pela matéria sobre a
qual atua e é, por ela, limitada. Os órgãos sensíveis não
podem receber simultaneamente todas as possíveis sensações
do mundo e de nós mesmos. Todo o existente é composto de
forma e matéria e, como matéria, está sujeito ao movimento,
está sujeito à contínua atualização de sua potencialidade e,
assim, em ininterrupto processo de corrupção. Portanto, a
razão não é capaz de prever ou antecipar todas as
contingências a que está sujeita em sua atividade enquanto
unida à matéria, ou seja, à constante transformação. Cada
singularidade vivida propicia mais dados à próxima vivência,
mas não à completude das informações que possibilitariam à
razão a seleção da opção perfeita ou mesmo da conclusão
definitiva.
Ademais, a razão está também sujeita ao movimento,
ainda que não na mesma intensidade que o corpo. Nossa
razão não é, desde o início e até o final de nossa existência, a
mesma. Ela amadurece e degenera. É em si apatheia. Contudo,
o logos enhuloi é pela matéria condicionada e afetada, ou seja,
a razão em si não se corrompe ou transforma, mas o
composto que atua racionalmente corrompe-se e se
transforma. O homem torna-se pelo tempo mais apto ao
raciocínio porque o exercita e porque, na experiência
cotidiana, aumenta sua base de dados, ou seja, a quantidade
de sensações e imagens sensíveis memorizadas e das quais o
intelecto extrai o inteligível. Ademais, a razão no composto
busca o inteligível imanente à corrupção sensível não do
composto, mas do próprio real, i.e., a permanência na
mudança. Assim, ainda que a razão em si não se altere, a
razão na matéria aperfeiçoa-se em e pela atividade. Nos
dizeres do estagirita: “intellectual excellence in the main owes
both its birth and its growth to teaching (for which reason it
requires experience and time)” (Ética a Nicômacos, II, 1, 1103 a
15).
Além disso, o corpo, por meio do qual ela atua,
amadurece e degenera. Em nossa infância, não somos capazes
do mesmo grau de discernimento que em nossa vida adulta.
Da mesma maneira, nossa memória e entendimento não são
os mesmos em nossa velhice.
Na velhice, a deterioração corporal começa a interferir em
nossa capacidade de recolher a forma sensível, de reservá-la e
de acessá-la, o que compromete a atuação da razão na
captação dos inteligíveis.
Em nossa infância a quantidade de experiências vividas é
mínima e, desta forma, a possibilidade de que a razão as
identifique e antecipe um cenário amplo de consequências
também se reduz. Assim sendo, nossas escolhas não
representam, ainda que racionalmente apontadas, a
excelência da atividade da razão. Em geral, dizemos que as
crianças quase não agem racionalmente e, pelo menos na
maioria dos casos, sem a plena consciência das consequências
de seus atos. Donos desta razão tão frágil, parecem sucumbir
aos desejos sensíveis e se movimentar como os animais,
empurrados pelas forças externas.
O desejo pelo prazer sensível é ilimitado e se opõe à
limitação. A racionalidade é limite, porque forma, ou seja,
determinação, individualização da matéria, do disforme, do
indeterminado. Em cada indivíduo esta batalha entre limite e
ilimitado, entre razão e irrazão é travada em vista do fim, da
autorrealização, ou seja, de que cheguemos a ser o que
devemos ser (e somos em potência) desde o início: atividade
racional excelente. Entretanto, se a razão atua na matéria e,
como tal, “enfraquece-se” pelas condicionantes do
movimento da matéria, na posição do desejo na justa medida,
a razão necessitará de auxílio. A retificação do apetite em

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