Politica de cotas raciais: instrumento de promocao de equidade e justica social/Racial admission quota policy: instrument for the promotion of equity and social justice.

AutorMendonça, Erica da Silva

Introdução

Este artigo aborda a política de ações afirmativas, mais especificamente a relativa às cotas raciais nas universidades brasileiras. O estudo resulta de pesquisa realizada em uma universidade pública da região Nordeste, com o objetivo de analisar a visão de discentes de diferentes cursos e centros da instituição a respeito do assunto. Partindo-se da observação do cotidiano, notamos que a política de cotas é um tema bastante polêmico, que divide opiniões entre pessoas contrárias e favoráveis, e que, consequentemente, possuem diferentes argumentos para a defesa de seus pontos de vista.

Entre os argumentos contrários às cotas raciais, encontra-se a alegação de que elas desconsideram o critério do mérito, mecanismo bastante exaltado nas normas morais da sociedade. Dessa maneira, segundo os seus defensores, leva até mesmo a uma discriminação reversa que aumenta o racismo (ANDREWS, 1997 apud BAYMA, 2012). Porém, a discussão sobre a meritocracia deixa de lado as condições socioeconômicas de um grande segmento da população negra até o momento de disputa das vagas nas universidades, se caracterizando por uma visão conservadora.

A Lei no 12.711 (BRASIL, 2012), que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio, estabelece em seu artigo 1 que essas instituições de ensino deverão reservar no mínimo 50% das vagas, por curso e turno, para estudantes advindos de escola pública, das quais 50% devem ser destinadas a alunos oriundos de famílias com renda igual ou inferior a um salário mínimo e meio. Declara, ainda, que os outros 50% serão preenchidos pelos autodeclarados pretos, pardos e indígenas e pessoas com deficiência, desde que observada a proporção dessa população na unidade da Federação de cada instituição, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

É inegável a dívida histórica existente com a população negra por mais de três séculos de escravidão a que foi submetida, cenário que gerou a desigualdade observada ainda hoje. Faz-se necessário, portanto, buscar medidas de democratização do acesso ao ensino superior, além de outras ações em áreas distintas, para que gradativamente esse segmento saia do lugar secular que lhe foi imposto. Segundo Januário (2014, n. p.):

Além da dívida histórica que o país tem com os afrodescendentes por anos de exploração, a lei veio para minimizar as diferenças raciais e socioeconômicas que sempre existiram no Brasil. Aqui, somente 47,73% dos brasileiros se declaram brancos, segundo o Censo de 2010, tornandose assim um dos países mais miscigenados do mundo. Mesmo com toda essa mistura ainda há diferenças que gritam aos nossos olhos. Assim, as cotas se tornam uma medida urgente pelo fato de que esperar por uma reforma no ensino público básico que coloque o negro em pé de igualdade para competir com o estudante branco de classe média de escola particular levaria anos, deixando as estatísticas inalteradas durante muito tempo ainda. A situação é muito díspar: em 2005 a porcentagem de negros cursando o ensino superior era de 5,5% do total de negros no Brasil; em 2015, esse número subiu para 12,8%; já entre os brancos, em 2005, esse número era de 17,8% e, em 2015, 26,5%, segundo o IBGE (VIEIRA, 2016). Esses números revelam que, mesmo depois de implementada a política de cotas raciais, a diferença entre negros e brancos acessando o ensino superior ainda é elevada.

O método que deu base à realização da pesquisa foi o materialismo histórico-dialético, por possibilitar a apreensão da temática a partir da perspectiva de totalidade, captando-se uma multiplicidade de determinantes por meio de aproximações sucessivas ao objeto. Ademais, em termos de procedimentos metodológicos, a pesquisa foi de caráter quali-quantitativo, com a utilização de dados tanto textuais, obtidos com a utilização das pesquisas bibliográfica e documental, quanto verbais, coletados com aplicação de formulário semiestruturado na pesquisa empírica.

A população da pesquisa foi composta por estudantes de diferentes cursos e centros da instituição de ensino superior (IES) pesquisada. Para a coleta dos dados foram utilizados quatro dos cinco centros da IES: Centro de Ciências Sociais Aplicadas (Serviço Social e Direito), Centro de Educação e Ciências Humanas (História e Pedagogia); Centro de Ciências Exatas e Tecnologia (Ciência da Computação e Engenharia Civil); e Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (Enfermagem e Medicina). De cada curso foram entrevistados sete alunos, totalizando uma amostra de 56 pesquisados, correspondendo a 1,44% do universo total de alunos ativos nesses cursos (3.887 alunos).

O texto se constitui de três seções, além desta introdução e das considerações finais. A primeira traz uma breve abordagem da história do negro no Brasil, desde a Escravidão até os dias atuais; a segunda é dedicada à política de cotas e foca na sua implementação na Universidade Federal de Sergipe, por ser a primeira do Nordeste a adotá-la; e a terceira apresenta os principais resultados da pesquisa.

O negro na sociedade brasileira

Entre os séculos XVI e XVIII, enquanto a Europa já estava implementando o trabalho livre, com o processo de industrialização, no Brasil ocorria a implementação do trabalho escravo, devido à expansão da agricultura, principalmente com o cultivo da cana-de-açúcar. Era o próprio processo de acumulação primitiva, gerador das condições para o capitalismo industrial (nos países europeus), que fazia surgir aqui a escravidão. E assim foi se gestando o trabalho escravo nas colônias, inclusive no Brasil, na medida em que eram desenvolvidas as produções de gêneros agrícolas (açúcar, algodão, tabaco) e metais preciosos (ouro e prata), revertendo-se em lucros para a metrópole se desenvolver economicamente (IANNI, 1988).

No século XVIII, o Brasil começou a sofrer pressões da Inglaterra para abolir a escravidão em suas terras, pois a Inglaterra estava adentrando no período de Revolução Industrial. Logo, precisava de um mercado consumidor maior, ou seja, precisava que os escravos fossem libertos e transformados em trabalhadores assalariados para consumirem os produtos industrializados vindos da Europa.

Os mercados nacionais e internacionais passaram a ser inundados também por produtos manufaturados, em quantidades crescentes e nas mais diversas qualidades e modas. As colônias europeias passaram a receber, em quantidades crescentes, as manufaturas inglesas. O capital industrial impunha-se sobre o comercial e o financeiro. Assim, ao longo dos séculos XVI a XVIII foi crescendo a importância da produção industrial [...]. Mas foi no século XVIII que o capital industrial conquistou a preeminência sobre o capital comercial. Foi uma transição histórico-estrutural complexa, na qual o capital produtivo passou a colorir e dar sentido ao conjunto das relações de produção e do processo de realização da mercadoria. (IANNI, 1988, p. 36). Acabar com o tráfico foi o pontapé inicial para a decadência da escravidão no Brasil, e a partir de então começaram a ser tomadas medidas para evitar que o liberto fosse integrado social e economicamente à sociedade. Quando a escravidão foi finalmente abolida, os negros não foram absorvidos pelo mercado de trabalho; muito pelo contrário, foram deixados às margens da inserção social, sem um lugar para morar, sem emprego, sem direitos essenciais, restando a eles a marginalidade e a formação de morros e favelas. Como destaca Theodoro (2008, p. 24-25):

Não houve a valorização dos antigos escravos ou mesmo dos livres e libertos com alguma qualificação. O nascimento do mercado de trabalho ou, dito de outra forma, a ascensão do trabalho livre como base da economia foi acompanhada pela entrada crescente de uma população trabalhadora no setor de subsistência e em atividades mal remuneradas. Esse processo vai dar origem ao que, algumas décadas mais tarde, viria a ser denominado 'setor informal', no Brasil. Ao invés de contratar trabalhadores negros libertos, os proprietários das fábricas e empresas priorizaram a mão de obra imigrante (IANNI, 1966). Esse fator, se caracterizando como uma forma de discriminação racial, contribuiu bastante para o cenário de exclusão da população negra que podemos ver até hoje. Rejeitado pelo mercado formal de trabalho, o negro ficou à margem da sociedade e encontrou como...

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