Politica, genero humano e direitos humanos na formacao do pensamento de Karl Marx/Politics, Human gender, Human Rights in the formation of Karl Marx's thought.

AutorSartori, Vitor Bartoletti

Introdução

No presente artigo, pretendemos abordar o momento inicial de formação do pensamento marxiano. (Cf. CHASIN, 2009) A partir daquilo que José Chasin chamou de análise imanente (1), trataremos dos textos marxianos de 1842-43, tendo em conta a relação entre política, vida genérica (Gattungsleben), ser genérico (Gattungswesen) e sociedade civil-burguesa (bürgerliche Gesellschaft). Passaremos, essencialmente, pelos textos da Gazeta Renana, pela Crítica à filosofia do Direito de Hegel e por Sobre a questão judaica, textos em que a temática ganha mais destaque e em que também se delineiam alguns temas essenciais à obra marxiana. A abordagem marcada pela análise imanente justifica-se porque, com ela, é a partir do próprio texto, no caso, de Marx que emergem as determinações de seu pensamento. Mesmo que se tenha em mente que há uma gênese de tal formação ideal, e mesmo que sua função social precise ser destacada com cuidado, tanto gênese quanto função, isoladas da estrutura objetiva das formações ideais analisadas, podem aparecer de modo arbitrário em uma pesquisa séria. Assim, a análise imanente chasiniana (que tem suas raízes nas pesquisas de Lukács da Destruição da Razão) constitui um passo necessário no entendimento de obras, artigos, e contribuições de autores importantes. Em nosso caso, trataremos das obras que compõem o período formativo do itinerário de Karl Marx.

A análise do pensamento de Marx justifica-se, primeiro, devido ao caráter clássico do autor nas assim chamadas ciências humanas; não é exagero dizer que qualquer posicionamento com maior fôlego neste campo, seja discordando, seja concordando com o autor, precisa de um acerto de contas com Marx e com o marxismo. Outro ponto que remete à importância do estudo destes textos são as discordâncias sobre o estatuto de tais obras. Trataremos desta questão, mesmo que rapidamente, mais à frente. Ou seja, neste texto, pretendemos contribuir para um estudo cuidadoso da obra de Marx; e isto se justifica, de um lado, pela influência decisiva do autor nos debates sobre a política e os rumos da sociedade atual; doutro lado, tem-se um debate sério sendo traçado entre aqueles que abordam o tema e, por isso, uma contribuição que pretenda clarificar pontos deste embate pode ser de valor. Mesmo que a política em Marx já tenha sido debatida por outros autores, acreditamos que o tratamento imanente dos textos de Marx traz temáticas, como aquela atinente à religião e à concepção de gênero (Gattug) que, ou foram abordados de modo apressado, com remissão à concepção feuerbachiana, ou foram levados a um papel meramente secundário.

Deste modo, é necessário trazer um alerta sobre nosso tema. Antes de qualquer coisa, é bom destacar que, muito embora autores importantes, como Althusser (1979), digam que a temática da relação entre indivíduo e gênero (Gattung) é marcada por incursões idealistas e feuerbachianas, acreditamos--acompanhados por autores como Lukács (2007, 2012, 2013), Chasin (2009), dentre outros--que se trata de algo bastante diverso. Isto se dá não só devido ao caráter, talvez, problemático da noção bacharelardiana, apropriada por Louis Althusser, de corte epistemológico. (2) Aqui, em verdade, não podemos entrar neste debate, por assim dizer, metodológico. Mas devemos destacar que a relação entre indivíduo e gênero, mesmo que por vezes a coisa não esteja colocada com as mesmas palavras, aparece como algo essencial a toda à compreensão de toda obra marxiana. (Cf. SARTORI, 2018) A tematização sobre a individualidade é muito presente em textos como os Grundrisse, Crítica ao programa de Gotha, Manuscritos etnológicos, dentre outros. E ela sempre vem acompanhada de um tratamento sobre a modificação e a transformação na sociabilidade e no elemento mais geral da conformação da sociedade; com isto, aquilo que aparece nos textos que vão até 1844 na figura do gênero, aparece também em outras categorias nos textos marxianos. Também é verdade que ela, explicitamente, aparece em textos como os Grundrisse, de modo que, por isso também, passar pela análise do termo--renegado pela tradição althusseriana--pode ser importante no estudo da obra de Marx.

Marx vem a dizer no Manifesto que, no comunismo: "no lugar da sociedade civil-burguesa antiga, com suas classes e antagonismos de classe, teremos uma associação na qual o desenvolvimento livre de cada um é a condição para o desenvolvimento livre de todos." (MARX; ENGELS, 1998, p. 45)

De acordo com Marx, com a superação (Aufhebung) da sociedade civil-burguesa, deixa-se de ter a contraposição entre o desenvolvimento humano genérico (trazido aqui no desenvolvimento livre de todos) e o incremento da individualidade. As capacidades humanas, relacionadas por Marx ao incremento das forças produtivas, deixam, portanto, de se opor ao desenvolvimento mais geral dos homens e das mulheres com a superação do capitalismo. (3) No sistema capitalista de produção, o incremento das forças produtivas do trabalho se dá, em certo sentido, aviltando a personalidade dos homens, para que digamos com Marx, contrapondo-se ao "desenvolvimento multifacetado dos indivíduos". (MARX, 2012, p. 33)

As forças produtivas, cujo incremento traz como potência o desenvolvimento livre de todos, dá-se no capitalismo na medida em que as potências sociais colocam-se como potências do capital e, assim, faz dos indivíduos agentes passivos. (4) Tem-se a oposição entre potências genéricas, colocadas com o incremento das forças produtivas, e a individualidade como uma marca do modo de produção capitalista, ao menos depois que a manufatura emerge. (5) Isto é bastante importante para o nosso assunto: deixa claro que a tematização presente em 1842-1843 continua, de um modo ou doutro, sendo trazida à tona por Marx. A questão é: neste momento inicial de formação do pensamento marxiano, a principal temática é a política, ao passo que, depois, tem-se o enfoque na crítica da economia política. Destacamos aqui a questão para que fique claro que há um desenvolvimento do pensamento marxiano; mas, ao mesmo tempo, há, de certo modo uma continuidade na descontinuidade; para o que nos diz respeito aqui: a tematização do gênero em correlação com a política nas obras de 1843-1844 é de grande relevo para que se perceba como que, ao fim, o essencial ao autor vem a ser a análise da anatomia da sociedade civil-burguesa.

Em obras como A ideologia alemã, Marx aponta--já adentrando com mais cuidado na questão da divisão do trabalho, da propriedade, e, assim, da anatomia da sociedade civil-burguesa--que o desenvolvimento das forças produtivas traz consigo também "o desenvolvimento das capacidades individuais". (MARX; ENGELS, 2007, p. 73) Isto, no entanto, acontece à medida que se tem ainda, no modo de produção capitalista, diz-se--sobre o tema--nos Grundrisse: "a condição estranhada [Fremdartigkeit]" (MARX, 2011, p. 164) (6) Ou seja, a relação entre individualidade e gênero--seja ela vista na relação entre os indivíduos e a comunidade, seja vista na relação de cada um com todos --é essencialmente histórica e é bastante analisada por Marx, mesmo em sua obra posterior ao momento que abordaremos neste pequeno texto. Diz explicitamente o autor nos Grundrisse: "os indivíduos universalmente desenvolvidos, cujas relações sociais, como relações próprias e comunitárias, estão igualmente submetidas ao seu próprio controle comunitário, não são um produto da natureza, mas da história." (MARX, 2011, p. 164) Os indivíduos universalmente desenvolvidos e as relações comunitárias estão, neste sentido, no centro da reflexão marxiana. (7)

O tratamento marxiano da questão afasta-se bastante do feuerbachiano por Marx trazer o caráter ativo--objetivo, processual e histórico--da conformação social da generidade. (Cf. LUKÁCS, 2013) Mesmo que Marx continue debatendo com o autor da Essência do cristianismo durante bastante tempo, desde o início, diferencia-se deste. Com isso, aponta-se, mesmo que rapidamente, que a questão que trataremos aqui não está ausente na chamada obra madura do autor. Isso faz com que, do ponto de vista do entendimento da obra marxiana, quer se queira, quer não, seja importante compreender este momento de sua produção. No que diz respeito à relevância da temática para além da obra marxiana, há de se destacar que o autor traz nos textos que analisaremos apontamentos importantes sobre a política. Com isto, aproxima-se também de um tema de grande destaque nas abordagens dos séculos XX e XXI da realidade social. Assim, analisar a posição (Standpunkt) marxiana pode ser fundamental; não só por se tratar de um clássico. A conformação da teoria social contemporânea passa por um ajuste de contas com Marx, sendo importante se ter uma representação a mais adequada possível da obra deste grande autor do século XIX.

O tema também é bastante polêmico entre os marxistas (por exemplo, entre os althusserianos), sendo necessário que se explicite--a partir daquilo que José Chasin chamou de análise imanente--o modo pelo qual o próprio Marx traz as questões levantadas acima. Sem que se passe por uma análise dos textos de 1842, 1843 e 1844, corre-se o risco de imputar a Marx uma concepção específica sobre a política. Seja para se mostrar uma ruptura, uma cisão, ou para se demonstrar certa continuidade na descontinuidade, o tema é de relevo. Há um embate importante sobre a temática na obra do autor nestes anos mencionados. Acreditamos que, mesmo aqueles que discordam de Chasin e de Lukács, citados acima, podem se beneficiar da análise do próprio texto marxiano. As categorias marxianas da época precisam ser analisadas com bastante cuidado e em correlação com temas como a crítica à religião e a relação entre indivíduo e gênero. E, assim, é preciso que se comece com o primeiro tratamento sistemático de Marx sobre a política.

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