Política de estado ou de governo? A reorientação da política externa brasileira sob o governo Bolsonaro

AutorJoão Victor da Motta Baptista, Artur Cruz Bertolucci, Ana Victória Klovrza Diogo
CargoPPG em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP)/Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP) e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)/Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade ...
Páginas502-533
Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 45, n. 250, p. 502-533, maio/ago., 2020 | ISSN 2447-861X
POLÍTICA DE ESTADO OU DE GOVERNO? A REORIENTAÇÃO DA
POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA SOB O GOVERNO BOLSONARO
State or government policy? The reorientations of brazilian’s foreign policy under
the Bolsonaro administration
João Victor da M. Baptista
PPG em Relações Internacionais San Tiago Dantas
(UNESP/UNICAMP/PUC-SP).
Artur Cruz Bertolucci
PPG em Relações Internacionais San Tiago Dantas
(UNESP/UNICAMP/PUC-SP).
Ana Victória Klovrza Diogo
PPG em Relações Internacionais da Universidade Federal de
Uberlândia (PPGRI - UFU).
Informações do artigo
Recebido em 21/06/2020
Aceito em 26/08/2020
doi>: https://doi.org/10.25247/2447-861X.2020.n250.p502-533
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Atribuição 4.0 Internacional.
Como ser citado (modelo ABNT)
BAPTISTA, João V. M.; BERTOLUCCI, Artur Cruz.;
DIOGO, Ana Victória K. Política de Estado ou de
Governo? A reorientação da política externa brasileira
sob o governo Bolsonaro. Cadernos do CEAS: Revista
Crítica de Humanidades. Salvador/Recife, v. 45, n. 250,
p. 502-533, maio/ago. 2020. DOI:
https://doi.org/10.25247/2447-861X.2020.n250.p502-533
Resumo
Os diferentes governos na história da República brasileira
realizaram mudanças na condução da política externa, em maior
ou menor grau, compartilhando, todavia, certos objetivos e
valores. Essa aparente continuidade era justifi cada por um
suposto insulamento burocrático do Itamaraty. Entretanto, a
política externa atual apresenta um sério questionamento a essa
ideia, uma vez que marca sua mais significativa ruptura, a partir
da eleição de Jair Bolsonaro e a chancelaria de Ernesto Araújo.
Este artigo, em diálogo com o histórico de produções acerca da
Política Externa Brasileira, pretende demonstrar como esta não
é uma p olítica de Estado, mas sim uma política de governo,
questionando o pressuposto amplamente difundindo do
insulamento burocrático do Itamaraty. Compreende-se que a
política externa está sujeita a barganhas políticas inerentes ao
funcionamento do Estado, assim como as demais políticas
públicas, apesar do notável déficit democrático nas disputas de
poder e influência sobre sua condução política. A partir da
revisão bibliográfica sobre o papel do Itamaraty e a Política
Externa Brasileira, o artigo debate a evolução da temática na
agenda eleitoral nacional e analisa a política externa dos três
primeiros semestres do governo Bolsonaro.
Palavras-Chave: Política Externa Brasileira. Política pública.
Insulamento. Déficit democrático. Jair Bolsonaro.
Abstract
The different governments in the Brazilian Republic story made
changes in the conduct of foreign policy, to a greater or lesser
degree, sharing, however, certain goals and values. This
apparent continuity was justified by an alleged bureaucratic
isolation from the Foreign Ministry. However, current foreign
policy poses a serious challenge to this idea, since it marks its
most significant rupture, after the election of Jair Bolsonaro and
the chancellery of Ernesto Araújo. This article, in dialogue with
the history of productions about the Brazilian Fo reign Policy,
intends to demonstrate how this is not a State policy, but a
government policy, questioning the widely disseminated
assumption of the bureaucratic isolation of the Foreign Ministry.
It is understood that foreign policy is subject to political bargains
inherent to the functioning of the State, as well as other public
policies, despite the notable democratic deficit in the power and
influence disputes over its political conduct. Based on the
bibliographic review on the role of the Foreign Ministry and the
Brazilian Foreign Policy, the article discusses the evolution of the
theme in the national electoral agenda and analyzes the foreign
policy of the first three semesters of the Bolsonaro government.
Keywords: Brazilian foreign policy. Public policy. Insulation.
Democratic deficit. Jair Bolsonaro.
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Introdução
Historicamente, a política externa do Brasil é compreendida pela sociedade civil como
uma área diferente das demais políticas públicas. Desde a Constituição de 1988, o processo
de formulação e execução da política externa brasileira foi instituído como uma exclusividade
do Poder Executivo federal, relegando aos outros poderes funções secundárias e a sociedade
civil foi praticamente alijada de possibilidades de participação no processo decisório. Com
exceção dos processos de ratificação e internalização no ordenamento jurídico brasileiro, as
matérias d e política ex terna no Congr esso Nacional historicament e pouco impactaram ou
influenciaram o processo decisório da política externa brasileira.
Ao longo do século XX, após a cé lebre chancelaria Rio Branco e as r eformas
institucionais do Ministério das Relações Exteriores (MRE ou Itamaraty), essa percepção de
distanciamento do Itamaraty com a sociedade foi sendo ampliada. Foi propagado um
discurso de máximo insulamento burocrático da pasta de relações exteriores, em que o
Itamaraty monopolizaria a formulação e implementação da política externa com um tom
positivo por supostamente distanciar a política externa das mazelas da política interna
(CHEIBUB, 1985).
As dinâmicas e complexidades do plano doméstico no estud o de Relações
Internacionais por décadas estiveram ausentes do debate central da disciplina. O avanço nas
reflexões teóricas incorporou esse importante elemento às análises, com o objetivo de
compreender a formação de preferências em Política Externa e os demais posicionamentos
da política internacional dos Estados. A Análise de Política Externa (APE) possui uma forte
contribuição no reconhecimento do papel dos atores domésticos na formulação de política
externa com a intenção de construir uma abordagem teórica que abarcasse os diferentes
níveis de análise (SNYDER et al., 1962; ROSENAU, 1967).
Instituições representativas e práticas representativas são o eixo central da difusão
das preferências de grupos sociais e de indivíduos para as políticas de Estado (MORAVCSIK,
1997). As preferências de determinados grupos e indivíduos atuam na construção de políticas
de governo por meio da pressão aos tomadores de decisão. A participação dos indivíduos é
essencial, pois a imposição de decisões e a ausência de participação popular são elementos
geradores de déficit democrático e da desvalorização das decisões (PECEQUILO, 2016).
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Compreender o valor democrático da legitimação da participação social na política
externa nos conduz a reflexões acerca de sua finalidade d entro do Estado. Ou seja, sua
concepção como política pública, assim como as demais áreas estatais, possibilitaria maior
abrangência aos campos de diálogo e a institucionalização de espaços de debate entre
sociedade e governos. Nesse sentido, possibilitaria uma série d e reflexões sobre o processo
decisório e as formas de legitimação das decisões políticas.
Assim, as questões que se colocam são as seguintes: A política externa brasileira é
realmente uma política de Estado, ou seja, conseguiu realizar o insulamento burocrático? Ou
seria a política externa, assim como as demais políticas públicas, suj eita às barganhas
políticas inter nas ao funcionamento do Estado? Ademais, de que maneira a atuação
internacional da gestão de Jair Bolsonaro corrobora para a análise de mudanças e
continuidades na política externa brasileira?
A história da política externa brasileira e o papel do Itamaraty
Na primeira metade do século XX, ocorreram reformas administrativas no Estado
brasileiro inspiradas no modelo weberiano de racionalização das instâncias governamentais.
Desde então, o insulamento burocrático é almejado como a mais eficiente forma de se
governar. Nessa visão, a abordagem técnica deve ser priorizada, em detrimento da
abordagem política, a fim de que disputas de poder não interf iram no processo decisório e a
solução mais eficiente seja formulada e implementada.
É comumente admitido pela literatura que esse processo de racionalização teria
ocorrido, ao longo do último século, com as decisões sobre política externa (CHEIBUB, 1985).
De forma praticamente evolutiva, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil (MRE ou
Itamaraty), teria passado de uma fase patrimonialista pouco competente para um elevado
grau de insulamento das disputas políticas, para tornar-se altamente técnico e eficiente.
O serviço exterior, principalmente durante o período imperial (1822-1889), teve o
patrimonialismo como lógica de funcionamento. Consistia em uma administração com baixo
comprometimento com os interesses nacionai s e de promoção d o bem-estar do povo
brasileiro. A seleção do corpo diplomático era feita livremente pelos governantes, muitas
vezes escolhendo familiares ou aliados para os cargos que exigiam conhecimento técnico. Os
interesses particulares dos administradores e governantes eram priorizad os em detrimento

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