Portugal e os Julgados de Paz

AutorDulce Nascimento
CargoMestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa. Advogada
Páginas127-154

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Enquadramento

Atualmente por todo o mundo encontra-se generalizada a existência de modelos diferenciados de resolução de conflitos. Seja alternativo ou completar ao Sistema de Justiça Tradicional Retributiva (Judicial), os denominados ADR - Alternative Dispute Resolution (Modelos de Resolução Alternativa de Litígios ou MESCs - Mecanismos Extrajudiciais de Solução de Controversias), bem como a Justiça de Proximidade1e a Justiça Restaurativa2são conceitos que fazem parte integrante da sociedade moderna, onde a crescente e descontrolada demanda judicial passou a ser um obstáculo à efetividade do direito material nos ordenamentos jurídicos, não tendo sido suficiente a generalidade das reformas processuais realizadas.

Espalhados por diversos países, nos vários continentes, alguns deles foram influenciados na história do próprio país, outros há que são totalmente originais3. De uma forma, ou de outra, a razão de ser do surgimento, ou ressurgimento, deste tipo de mecanismo extrajudicial resulta como resposta às diversas manifestações de interesses e necessidades dos cidadãos, à indispensável manutenção de valores essenciais a uma sociedade saudável, bem como à crescente e descontrolada novidade de conflitos, designadamente fruto do desenvolvimento e utilização das novas tecnologias nas relações pessoais, sociais e comerciais a que urge responder atempadamente.

Entre os princípios necessários para preservar ou resgatar aqueles valores, destacamos a participação ativa e cívica dos interessados, a autonomia da vontade privada, o respeito pelo outro e por si próprio, a autoresponsabilização pelos danos causados, assim como a sua justa reparação, atendendo aos efetivos interesses e necessidades dos intervenientes.

Igualmente, dignidade e segurança em encontrar respostas certas e atempadas para as questões que o caso concreto suscita nas partes intervenientes, com consequências emocionais e materiais, são valores imprescindíveis que se ambicionam alcançar, numa sociedade que se pretende cada vez mais informada, consciente e exigente.

Este tipo diferenciado de estruturas, criadas com o fim de solucionar litígios de baixo valor económico ou social, tem vindo a ter uma aceitação crescente, em particular dentro da União Europeia, como são exemplo disso, para além de Portugal, Inglaterra, Irlanda, Noruega, Bélgica, França, Espanha e Itália. Assim como fora da Europa, existindo modelos desenvolvidos, com resultados reconhecidos, nos EUA, Canadá, Nova Zelândia, Brasil, África do Sul, Japão, Singapura, Hong Kong, entre outros4.

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Diversos estudos e autores, na sua maioria sociólogos, filósofos e psicólogos, demonstram a importância de ensinar valores e ética nas escolas5, interiorizando e clarificando aqueles que são indispensáveis a uma cidadania consciente e responsável. Atendendo às experiências, realizadas ao longo de várias décadas, com modelos diversificados e resultados comprovados, Educação e Justiça podem e devem cumprir, conjuntamente, uma função pedagógica e social de transmissão e ensinamento de valores6essenciais ao exercício de uma cidadania esclarecida, consciente e responsável, que responda localmente às necessidades individuais e sociais.

Origem

Em Portugal, ao longo dos tempos, até à atualidade, a justiça extrajudicial viu as suas competências reconhecidas, restringidas e alargadas inúmeras vezes nas várias reformas efetuadas, chegando mesmo a desaparecer durante alguns períodos de tempo.

Muito se tem escrito sobre a história da instituição Julgado de Paz e o reaparecimento da figura do Juiz de Paz, encontrando-se registos de informação sobre o tema com vários séculos, de grande qualidade e quantidade, recorrendo a fontes de elevado valor7.

Sumariamente, há que referir que alguns autores situam o aparecimento inicial dos Juízes de Paz na Idade Média, e outros nas várias Ordenações: Afonsinas (Livro I, Titulo 25 e Livro III, T. 20, P. 5º); Manuelinas (Livro III, T. 15, P. 1º); e Filipinas (Livro III, T 20, P. 1º)8. Remontando à Lex Romana Visigothorum (Código Visigótico - compilação de Leis do Direito Romano: base do código jurídico que se manteve em vigor na Península Ibérica até meados do Séc. XII) promulgada em 506 por Alarico II (Rei Visigodo)9, encontramos a referência mais antiga equivalente ao atual Juiz de Paz. Ali, os Assertores de Pacis são definidos como magistrados investidos pelo poder régio com a finalidade de fazer paz. Também no Liber Iudiciorum, promulgado em 684 pelo Rei Visigodo Recesvinto, fazia-se referência aos Mandaneros de Paz, a quem competia conciliar as partes envolvidas, intervindo apenas nas causas pré-determinadas pelo Rei, quando a importância do litígio ou os litigantes envolvidos faziam recear perturbações.

Após a constituição do Reino de Portugal, reconhecida a sua independência e soberania com dinastia própria, no reinado de D. Manuel encontramos a fórmula do que viria a ser o atual Juiz de Paz. Nas Cortes de Elvas (1481-1482),

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em resposta ao pedido do povo de que o monarca encontrasse estruturas que incitassem à conciliação, criaram-se órgãos específicos com a missão de praticar e implementar a conciliação, tendo em 1519 os Avindores obtido regimento e a função de proceder ao concerto de demandas ou de desavindos, assim como resolver litígios laborais por aquela via.

Mas é na primeira metade do século XIX, após o triunfo do liberalismo, quando Portugal passou a dispor de Constituição escrita, que encontramos a primeira referência expressa à figura do Juiz de Paz. Constitucionalmente, em Portugal, encontramos referências a uma justiça extrajudicial na Constituição de 1822, na Carta Constitucional de 1826, e nas Constituições da República Portuguesa (CRP) de 1838, 1911, 1933 e 1976 (esta com duas revisões de especial relevância neste assunto - 1989 e 1997)10.

Na Constituição de 1822 o poder judicial pertencia exclusivamente aos juízes (já não às cortes ou ao rei), havendo juízes eletivos (eleitos pelo povo) e juízes letrados (formados em direito). Os primeiros julgavam de fato e os segundos de direito, competindo aos juízes de conciliação, exercitados pelos juízes eletivos, realizar a conciliação11.

A Carta Constitucional de 1826 estabeleceu que o poder judicial era integrado por juízes de direito (Relações e Supremo Tribunal de Justiça), jurados e juízes de paz, sendo estes últimos eleitos12. Neste momento ganhou peso a conciliação, prescrevendo-se ali que não poderia ser iniciado qualquer processo litigioso sem se ter, previamente, tentado a conciliação perante juízes de paz. No mesmo sentido, manteve a Constituição de 1838, conforme resulta nos termos do disposto no seu artigo 124º13.

Com a implantação da República em 1910, a situação alterou-se, passando a verificar-se um menor intervencionismo dos Juízes de Paz. Na vigência da Constituição de 1911, era ao Congresso da República que competia organizar o poder judicial, passando os magistrados judiciais a serem nomeados, mantendo-se a figura do júri14.

A Constituição da República Portuguesa de 193315marcou o início do Estado Novo, vindo a proceder à organização dos tribunais, que passou a constituir matéria de lei, sendo a função judicial exercida por tribunais ordinários e especiais. Durante este período (Estado Novo), os Juízes de Paz deixaram de existir16.

Com a Constituição da República Portuguesa de 197617, a Assembleia da República passou a ter competência exclusiva para legislar quanto à organização e competência dos tribunais e Ministério Público, bem como sobre o estatuto dos respectivos magistrados (al. j) do artigo 167º)18, mantendo-se omissa relativamente aos Juízes de Paz.

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Para além de consagrar a participação popular na administração da justiça, a CRP de 1976 instituiu a figura da Participação Popular e Consultoria Técnica19, assim como o reconhecimento da figura do júri (Decreto-Lei 605/75, de 3 de Novembro). Na sua primeira versão não fazia qualquer referência aos Juízes de Paz, prevendo apenas a possibilidade de criação de juízes populares e a possibilidade de se estabelecer outras formas de participação popular na administração da Justiça (n. 1 do artigo 217º CRP).

Os Juízes Sociais20, os Julgados de Paz21e o reaparecimento dos Juízes de Paz foram instituídos em Portugal pela Lei 82/77, de 6 de Dezembro - Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (LOTJ) de 1977, sendo que em relação aos Julgados de Paz apenas foi estabelecida a sua mera possibilidade. Afirmava-se ali a admissibilidade da existência de Juízes de Paz nas freguesias, eleitos pela assembleia ou plenário, com competência especificadamente determinada nos termos do disposto no 76º do citado diploma legal.

Os Julgados de Paz, introduzidos na Orgânica Judiciária, eram considerados tribunais de 1ª instância com competência para, nomeadamente, exercer a conciliação, julgar as transgressões e contravenções às posturas da freguesia, bem como preparar e julgar ações de natureza cível de valor não superior à alçada dos tribunais de comarca, quando envolvessem vizinhos e as partes acordassem em fazê-las seguir no Julgado de Paz.

Posteriormente, chegou a ser apresentado o Decreto-Lei 539/79, de 31 de Dezembro, com vista a regular a organização e funcionamento dos Julgados de Paz, tendo o mesmo em 31 de Dezembro de 1979 sido publicado, regulando a sua organização e funcionamento, bem como definindo os termos do processo dos Julgados de Paz (Diário da República n. 300 - 1ª Série - Decreto-Lei 539/79, de 31 de Dezembro22). Contudo, em sede de sujeição a ratificação daquele diploma, por Resolução da Assembleia da República 117/80, de 31 de Maio, deliberou recusar a sua ratificação, sendo em consequência adiada a correspondente regulamentação.

Na segunda revisão Constitucional de 198923o texto da Constituição da República Portuguesa passou a referir...

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