O Pós-positivismo Jurídico: uma discussão preliminar (ou o plano de fundo do direito contemporâneo)

AutorEduardo Rodrigues Dos Santos
Ocupação do AutorMestrando em Direito Público Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Páginas45-80

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Após o fim da 2ª Guerra Mundial, a ciência jurídica passou por um profundo processo de mudanças significativas que perdura até hoje. Entre essas mudanças, no campo filosófico-jurídico, visualizou-se a decadência do paradigma juspositivista, dando início à construção de um novo paradigma, habitualmente chamado de pós-positivismo jurídico.

Neste pequeno capítulo introdutório tentaremos apresentar as linhas mais basilares desse novo paradigma, que ainda se encontra em construção, apresentando os paradigmas anteriores e a problemática relação entre o pós-positivismo e a pós-modernidade.

1. 1 O Jusnaturalismo

O Jusnaturalismo ou Direito Natural consiste na corrente doutrinária do Direito que acredita haver direitos universalmente válidos e imutáveis, que são inatos e independem da vontade humana, que existem em razão de algo superior1e objetivam assegurar a Justiça.

Nesse sentido, Norberto Bobbio define o jusnaturalismo como a corrente do Direito que tem a convicção de que “uma lei para ser lei, deve ser conforme a justiça” e completa dizendo que “a teoria do direito natural é aquela que considera poder estabelecer o que é justo de modo universalmente válido” (BOBBIO, 2007, p. 35).

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No mesmo sentido, Aurora Tomazini de Carvalho afirma que, para o Jusnaturalismo, “o direito é uma ordem de princípios eternos absolutos e imutáveis cuja existência é imanente à própria natureza humana”, sendo que este direito natural é “anterior ao conjunto de leis postas e aprovadas pelo Estado” (CARVALHO, 2010, p. 72).

Por sua vez, Ronald Dworkin afirma que as teorias jusnaturalistas “sustentam que os juristas seguem critérios que não são inteiramente factuais, mas, pelo menos até certo ponto, morais, para decidirem que proposições jurídicas são verdadeiras”, e, segundo o próprio Dworkin, as correntes mais radicais do Jusnaturalismo afirmam que o Direito e a Justiça são coisas idênticas (DWORKIN, 2003, p. 44).

Já para o professor Edgar de Godoi da Mata-Machado (1976), o Direito Natural sustenta-se na concepção de que há um mínimo de coisas que são devidas ao homem em razão da sua própria natureza humana, como se verifica nas palavras do autor:

Há realmente um debitum, algo devido ao homem, enquanto mesmo que homem, tendo em vista a essência do homem (aquilo que o homem
é), melhor, sua natureza, raiz dos atos que o homem pratica; há coisas que se devem ao homem por corresponderem a exigências concretas de sua natureza [...] A vida, por exemplo, quer se considere em relação a cada indivíduo, a vida, pois, de cada um, quer se considere a própria vida social; a propagação da espécie pela união do homem à mulher, a educação dos filhos, o acesso de todos aos bens da cultura, o aperfeiçoamento intelectual e moral da pessoa humana, o respeito que é devido à sua liberdade e dignidade, são direitos naturais, atribuíveis ao homem, fundamentalmente, pela regra do direito natural... (MATA-MACHADO, 1976, p. 39-40).

Partindo das lições de Norberto Bobbio, pode-se afirmar que os Direitos Naturais consistem em direitos universais, ou seja, válidos para todos e em todos os lugares; imutáveis, isto é, válidos em qualquer tempo; de cognição racional, ou seja, conhecidos através da razão humana; produzidos pela natureza, ou pela razão humana ou ainda por Deus ou qualquer outra entidade divina; objetivamente bons,

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isto é, estabelecem aquilo que é bom para a sociedade, ou melhor, aquilo que é justo; e por fim, não são indiferentes aos comportamentos regulados, ou seja, eles os valoram (BOBBIO, 2006).

Norberto Bobbio, utilizando-se de um critério histórico, divide a doutrina jusnaturalista em três fases: Jusnaturalismo Clássico, Jusnaturalismo Medieval e Jusnaturalismo Moderno. Vejamo-las.

1.1. 1 O Jusnaturalismo Clássico

O Jusnaturalismo Clássico encontra-se ligado a Antiguidade Clássica e se desenvolve na Grécia Antiga, através das obras de grandes filósofos, perdurando até a Roma Antiga, onde ganhou contribuições significativas, tais como as de Cícero.

Bobbio ensina que o Jusnaturalismo Clássico é aquele que se desenvolve através das ideias dos filósofos gregos, sobretudo de Platão e Aristóteles, que trabalhavam com a ideia de uma justiça universal baseada em uma razão natural – naturalis ratio –, e que posteriormente foi adotado pelas escolas do ius gentium na Roma Antiga (BOBBIO, 2006).

No mesmo sentido, Aurora Tomazini de Carvalho:

O Jusnaturalismo Clássico é marcado pelo pensamento grego pré-socrático e tem fundamento na existência de uma lei natural. A “ordem natural” é inerente à essência das coisas, permanente e imutável. Deste modo, da mesma forma que há uma ordem intrínseca na natureza para os movimentos dos corpos, para a transformação da matéria, existe uma ordem jurídica para o convívio em sociedade: o direito (CARVALHO, 2010, p. 73).

Como ensina Mata-Machado, dentre os filósofos pré-socráticos, merecem destaque Heráclito e Pitágoras. O primeiro defendia a ideia de que todas as coisas são eternamente mutáveis, com exceção da “lei natural, ‘da qual todas as leis humanas tiram sua força’”. O segundo sustentava que a gênese das leis não se encontrava na vontade dos cidadãos, mas sim em sua “conformidade com as leis naturais” (MATA -MACHADO, 1976, p. 60).

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Dentre os sofistas, destacam-se Protágoras, Hípias, Licófron e Alcidamas. Conforme leciona Mata-Machado, Protágoras acreditava em um Direito Natural de caráter permanente e irredutível, sustentandose no mito de que Zeus ordenou a Hermes que repartisse entre todos os homens o respeito e a justiça. Hípias, Licófron e Alcidamas defendiam que o Direito Natural deveria servir como modelo para adaptação e transformação do direito vigente. Nesse sentido, para Licófron era inadmissível toda e qualquer forma de privilégios, vez que se opõem “à igualdade natural dos homens”, e com base no mesmo fundamento Alcidamas condenava a escravidão (MATA-MACHADO, 1976, p. 61).

Dentre os Socráticos, vale destacar que Sócrates, como ensina Henri Rommen citado por Mata-Machado, acreditava em um “‘mundo objetivo e cognoscível de valores: valores do bem, do belo e do justo’” (MATA-MACHADO, 1976, p. 61). Por sua vez, Platão, como demonstra Bruno Amaro Lacerda, defendia a existência de um Direito imutável e eterno ligado à ideia de Justiça (LACERDA, 2009). Já para Aristóteles, como leciona Norberto Bobbio, “o direito natural é aquele que tem em toda parte (pantachoû) a mesma eficácia” e que prescreve ações “cuja bondade é objetiva”, ou seja, trata-se de um direito justo e universal sustentado por pilares, não só jurídicos, mas também éticos (BOBBIO, 2006, pág.17).

Já entre os Romanos, realça-se a vasta obra de Cícero, para quem o Direito sempre fora maior que a lei, de modo que a Justiça e o Direito fundam-se na própria natureza e não no arbítrio, isto é, nas leis postas. Para Cícero o Direito Natural liga-se à ideia de virtude e Justiça, de modo que, para ele, não existem apenas Direitos Naturais, mas também Deveres Naturais, por exemplo, a honestidade, como se confere nos dizeres do próprio Cícero in verbis: “nada é útil, sendo contrário ao honesto” (CÍCERO, 2007, p. 150).

Em síntese, como se pôde verificar, o Jusnaturalismo Clássico liga-se à ideia de um Direito Natural eterno, universal e superior advindo da natureza em si (às vezes humana, às vezes divina [mitológica] e às vezes enquanto essência de todas as coisas).

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1.1. 2 O Jusnaturalismo Medieval

O Jusnaturalismo Medieval é aquele que se desenvolve na Idade Média, sendo extremamente pautado em fundamentos religiosos, caracterizando-se por pregar um Direito universal, geral e, sobretudo, que tenha como escopo fundamental a busca por uma justiça dentro dos liames do cristianismo, ou melhor, da Igreja Católica.

Nesse sentido, é pertinente a lição de Aurora Tomazini de Carvalho, in verbis:

No jusnaturalismo medieval, a “ordem natural” deixa de ser o modo próprio das coisas para ser a vontade divina. Misturam-se o conceito de “direito” com o de “justiça divina”. O direito passa a ser visto como uma ordem ontológica que expressa o justo, de modo que a positivação das leis pelo Estado está subordinada às exigências de uma ordem normativa superior, a justiça divina (CARVALHO, 2010, p. 73).

Dentre as obras de Direito Natural dessa época, destaca-se a do filósofo católico Tomás de Aquino que definia a lex naturalis, como: “Partecipatio legis aeternae in retionali creatura” – ou seja, aquilo a que o homem é levado a fazer pela sua natureza racional, entretanto essa natureza racional estaria vinculada ao seu criador (Deus), que, por sua vez, tinha a Igreja enquanto sua “legítima” representante (BOBBIO, 2006, pág. 20).

No mesmo sentido, Mata-Machado afirma:

Explica Sto. Tomás que todos os seres, enquanto regidos pela Divina Providência, participam de algum modo da lei eterna pelo fato de que, recebendo em si a impressão dessa lei, possuem inclinações que os impelem aos atos e aos fins que lhes são próprios. É a lei natural considerada genericamente, a qual rege a matéria inorgânica, as plantas, os animais. Mas a submissão da criatura racional à Providência Divina se faz de modo super-excelente (excellentiori quodam modo), pois o homem é co-partícipe da Providência e capaz, ele próprio, de prover ao que lhe convém e aos outros (sibi ipsi et aliis providens). Assim, a participação à...

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