A possibilidade de tornar real a utopia do trabalho saudável, sob a perspectiva do 'princípio esperança', de Ernst Bloch (1885-1977)

AutorRené Mendes
Páginas147-159

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René Mendes *

“Onde não se pode mais nada e onde nada mais é possível, a vida parou.” (Ernst Bloch, em Princípio Esperança, Volume I, Capítulo 18)

“Utopia não é um estado duradouro; mas então carpe diem, só que autenticamente num presente autêntico” (Idem, Capítulo 20)

Introdução

A imensa maioria das pessoas, ao longo de milênios e em quase todos os lugares do mundo, associa o Trabalho às ideias de castigo, de pena, de sofrimento, invocando ora a suposta “maldição do Éden” (equivocadamente interpretada, segundo penso); ora a etimologia da palavra trabalho (esquecendo a riqueza da palavra labor e os termos equivalentes a trabalho, em outros idiomas...), ou apegada a constatações históricas e observações cotidianas que confirmam essa associação e, de certa forma, reforçam e perpetuam esse conceito, ou pior, essa ideologia.

Não nos iludamos, contudo, com a falácia enganosa do Arbeit mach Frei (“o trabalho liberta”) inscrito nos portões de entrada dos campos de extermínio nazistas; tampouco com as mensagens otimistas do General Yamashita, utilizadas para impor o trabalho escravo na construção da lendária ponte do Rio Kway1 pelos prisioneiros de guerra no

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sudeste asiático, ambos os fatos ocorridos há apenas pouco mais de 70 anos. Ou outros cantos de sereia, que visam a forçar a adoção de ideologias ditadas pelo “espírito do capitalismo”, já denunciadas por Marx, estudadas por Weber, e ao longo do tempo crescentemente metamorfoseadas e travestidas em sutis e magnetizantes embalagens e rótulos, tal como denunciam autores como Sennett, Castel, Paugam — entre outros — e com destaque, entre nós, o Prof. Ricardo Antunes e o Prof. Élio Estanislau Gasda2, entre outros.

Há que se reconhecer que no caso da saúde e segurança dos trabalhadores e das trabalhadoras em nosso país, foram se infiltrando ideologias e culturas que favorecem a perpetuação do estado lastimável de condições de trabalho que ainda vigoram em muitos setores e segmentos, e de inaceitáveis indicadores de saúde dos que neles labutam, medidos, por exemplo, pela incidência de acidentes do trabalho e de doenças relacionadas ao trabalho, com sua carga de sofrimento, incapacidade e mesmo morte.

Como exemplos, destaco, nesta Introdução, o que denomino “cultura da inerência” ou a cultura do “risco inerente”, lembrando que inerência é conceituada como “estado de coisas que, por natureza, são inseparáveis e que somente por abstração podem ser dissociadas” (Houaiss). Lamentavelmente, nosso constituinte ajudou a reforçar esta ideologia, ao assim redigir, na rubrica dos Direitos Sociais, o Inciso XXII do art. 6º da CF: “... redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (grifo introduzido)

Destaco, ainda, a cultura do “infortúnio do trabalho” e da respectiva “infortunística do trabalho”, lembrando que infortúnio é “desgraça, má fortuna, adversidade, desdita, infelicidade; acontecimento, fato infeliz que sucede a alguém ou a um grupo de pessoas” (Houaiss). Quanta “carga ideológica” perniciosa à cultura da prevenção dos acidentes e doenças do trabalho!

Devo destacar, outrossim, a perpetuação da cultura da “monetização do risco” e dos respectivos adicionais de insalubridade e de periculosidade, contra a qual, há muitos anos, os movimentos de trabalhadores mais esclarecidos, lutava sob a bandeira de “saúde não se vende” ou “saúde não se troca por dinheiro”. Contudo, muitas vezes, o combate a essa cultura mórbida tem levado a que se retirem os adicionais de insalubridade ou periculosidade, sem retirar a insalubridade ou a periculosidade, ou, simplesmente, que se retire uma fração substancial da remuneração dos trabalhadores, sem qualquer compensação efetiva, nem de qualidade das condições de trabalho, nem da remuneração do trabalhador e da trabalhadora.

Cabe destacar ainda a cultura do “ato inseguro” e a da “culpabilização da vítima”, as quais, ainda que velhas e abjetas, também estão se metamorfoseando em modelos explicativos dos acidentes de trabalho, baseados em teorias do comportamento humano, abusivamente utilizadas por psicólogos, gestores, engenheiros e médicos, entre outros.

Destaco, ainda, a cultura da “naturalização” dos riscos e dos acidentes, que anda de mãos dadas com a cultura da “banalização” dos acidentes e danos causados pelo trabalho. A sobrecarga física e mental imposta pelo trabalho, os acidentes e as doenças relacionados com o trabalho seriam “ossos do ofício”...

Frente a tudo isto, contrapôs-se o conceito da “anti” Patologia do Trabalho, baseado na transformação das condições e ambientes de trabalho insalubres (que fazem mal à saúde), em condições e ambientes supostamente salubres, que, também supostamente, não fariam mal à saúde. Considero esse estágio como obrigatório, necessário. Como se verá ao longo deste texto porém, é necessário, mas não suficiente. Mais adiante, será dedicada uma seção ao que denomino “primeiro estágio”, o da luta contra a periculosidade e insalubridade do trabalho, com o objetivo de torná-lo não perigoso e não insalubre.

Se o chamo de “primeiro estágio” é porque tenho em vista outros... Pelo menos mais um. Com efeito, defendo neste capítulo a tese de que existe um estágio, um patamar, um horizonte mais ousado, que é o de construir o trabalho que não apenas não cause dano à saúde das pessoas, mas possa, quiçá, contribuir para a sua melhoria, o seu fortalecimento. “Ora (direis) ouvir estrelas (...) perdeste o senso (...) tresloucado amigo...” é coisa de poetas e sonhadores, em referência literal ao poeta Bilac, no seu imortal poema Via Láctea. Mas é isto mesmo que pretendo propor neste capítulo. Aliás, antes de mim, a Professora Elizabeth Costa Dias, da UFMG, o fez de forma pioneira e extremamente qualificada, ao escrever o instigante “Posfácio” do tratado Patologia do Trabalho, por ela intitulado “a utopia do trabalho que também produz saúde: as pedras no caminho e o caminho das pedras” (DIAS, 2013).

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Tal como a Professora, tentaremos ir pelo viés da utopia, o que, por si só, já acarreta complicações, tendo em vista uma contradição intrínseca: utopia é, etimologicamente, a agregação da partícula grega , não, negação, com a partícula tòpos, lugar, e, portanto, palavra com significado literal de não lugar, sem lugar, nenhum lugar. Como e por que colocá-la como referência para nosso texto, aliás, nossa luta?

Por certo, não será esta a primeira vez que utopias são consideradas inúteis, fúteis, quando não até perigosas e indesejáveis, possíveis ameaças ao status quo social, político, econômico, e mesmo cultural e religioso. Thomas More (1477-1535), quando inaugurou o uso do termo utopia, que deu título à sua obra, publicada em 1516, situou sua cidade ideal numa ilha ou local imaginário, o qual, distante ou perto no espaço, poderia tornar próximos e reais seus sonhos de um mundo melhor (ele já pensava que um outro mundo seria possível...). Morreu decapitado, por ordem de Henrique

VIII. Exatamente 400 anos depois, foi canonizado pelo Papa Pio XI.

Muito antes de More, Platão situara suas utopias sobre a Justiça em uma imaginária República, a qual, apesar de ter servido e ainda servir de inspiração para muitos, nunca se concretizou na sua plenitude, nem no espaço e nem no tempo. Tommaso Campanella (1568-1639) localizou suas utopias em uma Cidade do Sol (1602), mais perto, talvez, de um lugar mais milenarista que utópico, cidade mais perto, talvez que A Cidade de Deus, de Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona. Francis Bacon (1560-1626) localizou a sede de suas utopias num lugar imaginário que denominou A Nova Atlântida (1623). Étienne Cabet (1788-1856) situou suas utopias na Icária (1840), a qual, muito embora existente enquanto nome de uma pequena ilha grega no Mar Egeu, não sediou fisicamente a utopia. Seu nome serviu como “sede provisória” de ideias ousadas, tanto para projetos experimentais no Novo Mundo (que não sobreviveram), como para inspiração de “socialistas utópicos”, dos séculos XVIII e XIX — Robert Owen (1771-1858) e Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), entre outros — alimentando, também, as raízes das ideias sociais de Karl Marx (1818-1883), Friedrich Engels (1820-1895) e Paul Lafargue (1842-1911), entre outros. Icaria homenageava o mitológico Ícaro, aquele que ten-tara deixar Creta, voando. Daí a analogia com as utopias, tentativas de voar, no seu sentido figurado que até hoje utilizamos. Os “icários” e assemelhados do século XIX localizaram seus sonhos utópicos (e sua luta) mais proximamente, tanto no espaço como no tempo, focando temas e lutas bem terrestres, no chão de fábrica, literalmente...

Pois é por este viés que introduzo meu texto neste livro, isto é, buscar plantar a utopia no aqui e agora do mundo do Trabalho! O despertar que proponho, na verdade, não deixa de ser — de certa forma — o resgate de uma utopia de mais de 400 anos, quando Campanella prescrevia que os trabalhadores de sua cidade imaginária escolheriam suas profissões livremente; seriam respeitados e honrados pela sociedade, e o trabalho não lhes prejudicaria a saúde. Pelo contrário, dizia Campanella: o trabalho não causaria dano à sua saúde; ela seria conservada, e mais: a saúde poderia até melhorar, tornar-se mais vigorosa, graças ao trabalho. Mas isso seria na Cidade do Sol... E na cidade dos homens (não a de Santo Agostinho, mas a nossa)? Essa utopia nunca se concretizou como possibilidade real e alcançável, utilizando a ênfase de Ernst Bloch (1885-1977) em sua obra O Princípio Esperança. Não por faltarem conhecimento, tecnologia e meios, mas existirem, em excesso, insensibilidade, omissão e negligência, creio eu...

Afinal, para que servem...

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