É possível mitigar a capacidade e a autonomia da pessoa com deficiência para a prática de atos patrimoniais e existenciais?

AutorAline de Miranda Valverde Terra e Ana Carolina Brochado Teixeira
Ocupação do AutorDoutora e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)/Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Páginas25-44
É POSSÍVEL MITIGAR A CAPACIDADE
E A AUTONOMIA DA PESSOA COM
DEFICIÊNCIA PARA A PRÁTICA DE ATOS
PATRIMONIAIS E EXISTENCIAIS?
Aline de Miranda Valverde Terra
Doutora e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Professora Adjunta de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ. Profes-
sora de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Coordenadora editorial da Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil. Advogada.
Ana Carolina Brochado Teixeira
Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre
em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
Professora do Centro Universitário UNA. Coordenadora editorial da Revista Brasileira
de Direito Civil – RBDCivil. Advogada.
“Consentir equivale a ser.”
(RODOTÀ, 2007, item 5)
Sumário: 1. O modelo médico da deciência e o regime abstrato e excludente das incapaci-
dades da pessoa com deciência no Código Civil de 2002. 2. O modelo social da deciência
e o novo regime das incapacidades das pessoas com deciência introduzido pelo Estatuto da
Pessoa com Deciência, a partir da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deciência.
3. Possibilidade de restringir a capacidade e a autonomia das pessoas com deciência para a
prática de atos patrimoniais e existenciais. 4. Conclusão. 5. Referências.
1. O MODELO MÉDICO DA DEFICIÊNCIA E O REGIME ABSTRATO E
EXCLUDENTE DAS INCAPACIDADES DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO
CÓDIGO CIVIL DE 2002
No Brasil, como em todo o mundo, o conceito de def‌iciência vem passando por
profundas transformações a f‌im de acompanhar as inovações na área da saúde, bem como
a forma pela qual a sociedade se relaciona com a parcela da população que apresenta
algum tipo de def‌iciência.
Na Antiguidade, vigia o modelo moral de def‌iciência, por meio do qual se buscava
uma justif‌icativa religiosa para a def‌iciência, que transformava a pessoa em alguém
improdutiva, alguém a ser tolerada pela família e pela sociedade (PALACIOS, 2008, p.
37). Essa ideologia foi sucedida pelo modelo médico de incapacidade, que considerava
somente a patologia física e o sintoma associado que dava origem a uma incapacidade.
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ALINE DE MIRANDA VALVERDE TERRA E ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA
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Esse modelo foi adotado pelo Código Civil de 1916 e reproduzido no Código Civil de
2002, que estabeleceu disciplina abstrata das incapacidades baseada no sistema de tudo-
-ou-nada:1 a pessoa com def‌iciência mental, que não tivesse o necessário discernimento
para a prática dos atos civis, seria considerada absolutamente incapaz, sendo-lhe negado
o exercício autônomo de qualquer ato da vida civil; fazia-se imperioso um representante
para, em seu lugar, manifestar a vontade necessária à prática de referidos atos. A vontade
do representante, portanto, substituía inteiramente a vontade da pessoa com def‌iciência.
Se, no entanto, a pessoa com def‌iciência mental ostentasse discernimento reduzido,
seria considerada relativamente incapaz, e a validade de sua manifestação de vontade
vinculava-se à conjunta manifestação de vontade de seu assistente. Para os atos da vida
civil, de maneira geral, exigia-se também a manifestação do assistente.
O modelo médico acabou por negar a inúmeras pessoas com def‌iciência, sujeitos de
direito, em primeiro lugar, o exercício de parcela de autonomia relativa a atos que teriam
plenas condições de exercer livremente, a revelar um regime excludente, que retira da
pessoa com def‌iciência a possibilidade de decidir mesmo sobre os atos mais prosaicos
da vida. Embora absoluta ou relativamente incapaz, a pessoa com def‌iciência raramente
será desprovida de qualquer possibilidade de manifestação de vontade autônoma, sendo
necessário assegurar-lhe espaços de liberdade dentro dos quais possa exercer sua auto-
nomia, por menor e mais singela que seja.
Além disso, e ainda mais grave, o sistema das incapacidades codif‌icado permitia,
como regra, a dissociação entre titularidade e exercício também dos direitos inerentes à
pessoa humana. Em um sistema abstrato, do tudo-ou-nada, isso acaba por impedir que
a pessoa com def‌iciência pratique todo e qualquer ato ligado diretamente à realização do
seu projeto de vida e ao livre desenvolvimento de sua personalidade. E mais, no extremo,
semelhante modelo pode mesmo permitir que lhes seja negada a própria qualidade de
pessoa humana: a dissociação abstrata e absoluta entre titularidade e exercício de direitos
inerentes à pessoa humana acaba, na prática, por promover a própria desconsideração
das titularidades, fomentando um processo de reif‌icação da pessoa com def‌iciência.
No Brasil, o exemplo mais emblemático e chocante desse fenômeno de reif‌icação da
pessoa com def‌iciência a partir da própria negação da titularidade de direitos inerentes
à pessoa humana se passou no Hospital Colônia de Barbacena, fundado em 12 de ou-
tubro de 1903. O Hospital Colônia de Barbacena se tornou conhecido pelo público na
década de 1980, em razão do tratamento desumano que oferecia aos pacientes, aos quais
eram negados os mais básicos direitos inerentes à pessoa humana. O psiquiatra italiano
Franco Basaglia, pioneiro na luta antimanicomial na Itália, esteve no Brasil e conheceu o
Hospital Colônia em 1979. Na ocasião, em uma coletiva de imprensa, desabafou: “Estive
hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma
tragédia como essa”.2
1. Em crítica ao regime das incapacidades do Código Civil de 2002, af‌irmam Anderson Schreiber e Ana Luiza Ne-
vares: “Manteve-se um regime unitário que reúne todas as incapacidades sob o mesmo rótulo sempre sob a lógica
do ‘tudo-ou-nada’. Quem é incapaz o é para todos os atos da vida civil, expressão que abrange desde a doação de
um imóvel à compra de um refrigerante” (SCHREIBER; NEVARES, 2016, p. 42).
2. Disponível em: [http://justif‌icando.cartacapital.com.br/2015/03/05/o-holocausto-manicomial-trechos-da-his-
toria-do-maior-hospicio-do-brasil/]. Acesso em: 28.02.2018.
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