Povos ciganos e Servico Social: um necessario dialogo para o debate etnico-racial/Gypsies and Social Work: a necessary dialogue for the ethnic-racial debate.

AutorSantos, Gabriela Alves dos
CargoREVISTA EM PAUTA

Introducao

O presente artigo busca fomentar a discussao sobre os povos ciganos no debate etnico-racial do Servico Social brasileiro, considerando a importancia desses grupos na formacao historica e cultural do Brasil. Porem, vale destacar que, quando falamos em povos ciganos, nao nos referimos a uma unica etnia, considerando que este e um grupo heterogeneo, subdivido em tres grupos etnicos: Rom, Sinti e Calon, diferenciados pela sua cultura, lingua e origem. Os Rom falam romanes e ainda subdividem-se em kalderach, machuaia, rudari, horahane e lovara, sendo um grupo originario da Europa Oriental, estando presentes no Brasil desde meados do seculo XIX; os Calon falam chib, sao oriundos da Espanha e de Portugal, estando em territorio nacional desde o periodo colonial; por fim, os Sinti falam sinti, sao provenientes predominantemente da Europa Central e emigraram para o Brasil, principalmente, apos a Primeira e Segunda Guerra Mundial.

Isso posto, levamos em conta o fato de que esta populacao e tambem usuaria dos servicos sociais, e que seu atendimento provoca inquietacoes e reflexoes no campo dos valores e da etica. Objetivamos, porem, nao cair em visoes reducionistas que defendem um culturalismo que cria proposicoes relativistas no que concerne a etica e aos direitos humanos.

Entendemos que ha que se apropriar do debate sobre a cultura e as formas de vida das diferentes etnias com as quais trabalhamos para podermos pensar estrategias de atuacao que levem em conta tais questoes. Assim, compreendemos que este deve ser um aprofundamento no campo da discussao etnico-racial, no qual a profissao vem se debrucando nos ultimos anos.

Destarte, estruturamos o presente artigo da seguinte forma: apresentamos, na primeira parte, uma revisao bibliografica sobre o processo de violacao dos direitos dos povos ciganos no Brasil, desde o seculo XV ate o seculo XX. Para tanto, tomaremos como referencial principal as producoes de Moonen (2011) e Teixeira (2008), bem como faremos o resgate da legislacao de imigracao brasileira da decada de 1940 como parte da pesquisa documental realizada. Na segunda parte do texto apresentamos um breve levantamento sobre a tematica etnico-racial na profissao e a construcao historica deste debate, buscando compreender como a questao dos povos ciganos perpassa ou nao esta tematica na producao e formacao em Servico Social.

Tal levantamento se deu a partir da realizacao de pesquisa sobre a producao academica nas plataformas da Unifesp, USP, Scielo, Google Academico, WorldWideScience, Academia.edu, Dialnet e Bielefeld AcademicSearchEngine, a partir das palavras-chave: ciganos, Servico Social, assistente social. Alem disso, para os posicionamentos da categoria, utilizamos o portal do Conselho Federal de Servico Social (CFESS) com as palavras-chave: ciganos, etnia, povos tradicionais, raca. Quanto ao levantamento sobre a formacao profissional, utilizamos como base o estudo realizado por Oliveira (2015) e, a partir das disciplinas por ela identificadas em 18 das 24 Instituicoes Federais de Ensino Superior (Ifes) com a tematica racaetnia, realizamos a leitura e analise das ementas de todas as que sao consideradas obrigatorias.

Por fim, nas consideracoes finais, compreendendo os avancos que viemos conquistando no Servico Social no Brasil no que se refere ao debate etnico-racial, tecemos algumas reflexoes sobre a importancia da inclusao e/ou explicitacao da questao dos povos ciganos junto a este debate.

Tendo em vista que a categoria defende (1) um exercicio profissional isento de atos discriminatorios relacionados a questoes de classe social, genero, religiao, nacionalidade, orientacao sexual, identidade de genero, idade, condicao fisica e etnia, entende-se que a discussao sobre povos ciganos na profissao pode contribuir para refletir sobre estrategias de atendimento, bem como sobre demandas e especificidades culturais dessa populacao (mas nao so), ancoradas no respeito a diversidade etnica e demais principios e valores legitimados pela categoria profissional no projeto etico-politico. Neste sentido, esperamos que este artigo possa servir como suscitador do inicio deste debate.

Os povos ciganos e sua marginalizacao no Brasil

Conforme apontado anteriormente, ao falarmos dos povos ciganos, temos diferentes etnias compondo este grupo. Neste sentido, faz-se necessario explicitarmos o que compreendemos por etnias, uma vez que estamos buscando defender a importancia de o Servico Social se apropriar do debate acerca dos diferentes grupos etnicos como parte da discussao ora realizada.

No seculo XIX, a partir da obra Ensaio sobre a desigualdade das racas humanas (2) , do filosofo Arthur de Gobineau (1816-1882), o termo raca era utilizado para designar diferentes grupos etnicos que, supostamente, tinham particularidades fisicas, morais, psicologicas e intelectuais distintas. Nessa concepcao, acreditava-se que existiam varias racas humanas, ocasionando uma hierarquizacao que, por conseguinte, legitimava o tratamento desigual dado a diversos grupos etnicos.

Naquele periodo, o desenvolvimento de producoes cientificas a respeito dessa tematica contribuiu para a construcao da teoria da supremacia racial branca, que nas de decadas de 1920 e 1930 foi apropriada, numa perspectiva imperialista, pelos Estados-Nacoes europeus, sustentando e legitimando o genocidio de judeus, negros, homossexuais e ciganos durante a II Guerra Mundial.

Diferentemente da perspectiva biologica difundida no seculo XX, nesse artigo, ao se defender que a profissao incorpore raca/etnia no seu debate, entende-se que essa categoria analitica assume uma visao da realidade social. Considera-se, portanto, que ela ainda e um conceito difundido no tecido social que legitimou e legitima formas de dominacao e exclusao, assumindo um carater politico e ideologico que se materializa, ainda hoje, nas formas de preconceito racial.

Apesar de, equivocadamente, raca e etnia serem compreendidas como sinonimo, elas se diferem; respectivamente, uma se refere a uma construcao sociologica, enquanto que a outra faz mencao a afinidades linguisticas e culturais de um grupo. Conforme, Munanga (2003, p. 12):

Uma etnia e um conjunto de individuos que, historica ou mitologicamente, tem um ancestral comum; tem uma lingua em comum, uma mesma religiao ou cosmovisao; uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo territorio.

Destarte, compreendemos, neste artigo, os povos ciganos como etnias com caracteristicas proprias, marcados historicamente por elementos socioterritoriais e culturais. Mesmo tendo a mesma etnia em diferentes paises do mundo, alguns desses elementos tem sua particularidade na realidade brasileira, por exemplo.

Nao se sabe ao certo a origem dos povos ciganos, pois e inexistente a escrita entre eles, dificultando a construcao de uma historia que faca jus ao local de onde eles se originaram. Somente no final do seculo XVIII os estudos linguisticos de Christian Buttner, em 1771 e, posteriormente os de Johann Rudiger e Heinrich Grellmann, em 1782 e 1783, respectivamente, indicaram o parentesco entre as linguas ciganas e indiana, concluindo, entao, que os ciganos haviam se originado na India.

O fato de eles serem agrafos, ou seja, nao utilizarem a representacao escrita, dificulta tanto a construcao dessa historia inicial como a elaboracao de uma producao autentica. Assim, os registros existentes sobre esse povo, geralmente, se dao a partir do olhar do outro, que, majoritariamente, difundiu informacoes a partir de um ponto de vista estrangeiro e hostil (3).

Embora haja tais estudos que indicam a origem dos povos ciganos, conforme Moonen (2011), a semelhanca linguistica nao e suficiente para afirmar de onde eles vieram e, inclusive, muitos ciganos nao sabem e nao demonstram interesse em conhecer a origem de seus antepassados. Para o autor, o que existe e a consensualidade entre os estudiosos de que no seculo X ocorreu um forte movimento migratorio dos ciganos. Essas ondas migratorias se assentaram no seculo XV, possivelmente em decorrencia da peste negra e das guerras, quando eles chegaram ao solo ocidental. O primeiro registro de ciganos na Europa - datado de 1417 - revela o preconceito que eles vivem historicamente.

As primeiras noticias fidedignas datam de 1417, quando varias vezes ha registro de ciganos na Alemanha. Ja em Magdeburg informa-se que durante duas semanas estiveram na cidade 'os Tartaros, chamados ciganos', gente preta, horrivel, tanto os homens quanto as mulheres, com muitas criancas, que foram expulsos de seu pais e desde entao vagavam pela terra. (MOONEN, 2011, p. 9).

Segundo o texto Povo cigano: o direito em suas maos (BRASIL, 2007), os europeus acreditavam que os ciganos eram pessoas amaldicoadas e/ou enviadas pelo demonio, por causa da cor...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT