Pra Lá e Pra Cá: o Direito de Ir e Vir da Criança e do Adolescente

AutorDébora Vanessa Caús Brandão
Páginas171-178

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E se quiser saber prá onde eu vou Prá onde tenha Sol É prá lá que eu vou

Jota Quest

1. Introdução

A questão da criança e do adolescente tem sido subtratada, desde sempre, pelo Poder Público, pela sociedade, pela comunidade e pelos genitores/ responsáveis.

Desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), há uma série de equívocos hermenêuticos, omissões por todos os lados, especialmente por parte do Poder Público no que concerne à implementação do Estatuto. É bastante comum frases se referindo pejorativamente ao Estatuto porque este estabelece direitos, mas não deveres aos seus protagonistas.

Além da leitura equivocada do ECA, isto tem gerado consequências danosas à sociedade brasileira, especialmente aos que mais merecem a proteção: as crianças e os adolescentes.

Nesta perspectiva, este trabalho aborda o direito fundamental de ir e vir assegurado às crianças e aos adolescentes numa dimensão relativa. Aborda-se a questão da necessidade de limitação deste direito de ir e vir por parte dos genitores e responsáveis, porém, não se olvida que a responsabilidade, que é de todos, se impõe. Não se pode mais fingir que as políticas públicas existentes são suficientes ou eficazes. Ao contrário.

Diante deste cenário em que os responsáveis não assumem seus papéis, juízes publicam portarias objetivando limitar a circulação de crianças e adolescentes em lugares e/ou horários inadequados para estes, repercutindo por todo o Brasil, com posicionamentos favoráveis e contrários.

Concluiremos que, a despeito de posições respeitáveis acerca da inoportunidade e eventuais ilegalidades destas portarias, há que se reconhecer

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que se tratam de legítimos esforços para alguma proteção à criança e ao adolescente. Nestes casos e em mais do que qualquer outro, o ativismo judicial se justifica diante do princípio da prioridade que deve ser aplicado às causas da infância e juventude.

2. A gênese do direito de liberdade das crianças e dos adolescentes

A Declaração de Genebra, em 1924, surge diante das barbáries cometidas contra as crianças e os adolescentes durante a Primeira Guerra Mundial. Não havia qualquer previsão concernente ao direito de locomoção expressamente. O preceito mais próximo a este direito, se é que pode dizer algo assim, é o “I. A criança deve receber os meios necessários para seu desenvolvimento normal, tanto material como espiritual”.

A Declaração Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948 estabelece no art. 3º que “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. E complementa no art. 13 que “1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado. 2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar”.

Neste aspecto, note-se que não há qualquer menção à criança e ao adolescente. Trata-se de garantia para todos os seres humanos.

A Declaração Universal dos Direitos da Criança, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1959, estabeleceu:

Art. 4º E dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (grifo nosso)

No plano mundial, foi por intermédio deste documento que as crianças e os adolescentes passaram à condição de sujeitos de direitos, porém era um documento desprovido de coercibilidade, era apenas uma enunciação de direitos. A coercibilidade adveio com a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, Convenção de Nova Iorque, de 19891.

A Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, reitera o art. 3º da Declaração Universal de Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948.

No Brasil, a criança e o adolescente assumem esta condição de sujeitos de direitos a partir da Constituição Federal de 1988, mas a efetivação de tal condição só se dá com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990.

Com esta lei civilizatória, as crianças e os jovens passam a ser sujeitos de direitos e deixam de ser objetos de medidas judiciais e procedimentos policiais, quando expostos aos efeitos da marginalização social decorrente da omissão da sociedade e do Poder Público, pela inexistência ou insuficiência das políticas sociais básicas2.

Antes, somente as crianças e os adolescentes que estavam, de alguma forma, em conflito com a lei ou desamparados eram objetos de medidas judiciais, em virtude da Doutrina da Situação Irregular, que era chancelada pelo Código de Menores até então vigente (Lei n. 6.697/79).

Quando crianças e adolescentes assumem o status de sujeitos de direitos, passam a titularizar todos os direitos fundamentais, tais quais qualquer pessoa humana. Estes direitos estão consagrados na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90):

[...] a tutela às pessoas em desenvolvimento desdobra-se em outras prescrições constitucionais específicas, notadamente, no art. 6º, que positiva a proteção à infância como um direito social, e o art. 227, que atribui à infância e à juventude um momento especial na vida do ser humano e, por isso, assegura a crianças e adolescentes o status de pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, além de conferir-lhes a titularidade de direitos fundamentais e determinar que os Estados os promova por meio de políticas públicas.3

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Dentre os direitos fundamentais da criança e do adolescente estão o direito à vida, à saúde, à liberdade, ao respeito e à dignidade.

3. O direito fundamental de ir e vir das crianças e dos adolescentes

Os direitos fundamentais consagrados pela Constituição Federal permitem ao homem seu desenvolvimento em sociedade. Liberdade, respeito, dignidade são mais que adjetivos, pois permitem que a pessoa humana se desenvolva protegida dentro da sociedade.

Crianças e adolescentes não são mais capitis diminutae, mas sujeitos de direitos plenos; eles têm, inclusive, mais direitos que os outros cidadãos, isto é, direitos específicos depois indicados nos títulos sucessivos da primeira parte (do ECA)4. Estes direitos específicos são exatamente aqueles que lhes asseguram o desenvolvimento, o crescimento, o cumprimento de suas potencialidades, tornando-os cidadãos adultos livres e dignos.5

De fato, crianças e adolescentes precisam de mais proteção que um adulto porque são seres em desenvolvimento, mais vulneráveis do que qualquer outro ser humano.

Para Adriano de Cupis, o direito de liberdade não é senão a faculdade de agir como melhor lhe parecer, dentro dos limites impostos pelo ordenamento jurídico6. Isso nos remete ao art. 5º, II, da Constituição Federal, que consagra que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Não há dúvida de que são titulares do direito de ir, vir e permanecer, inseridos em seus contextos pessoais, familiares, comunitários etc.:

[...] o menor posto fora de seu meio social não sobreviverá ou realizará sua vocação pessoal de crescer. Não terá o natural contato com as instituições sociais, bem organizadas, como a família, a escola, o emprego, o clube e a igreja. A sociedade ou o excluiu ou o deixou à margem. O homem não se realiza fora da sociedade. O defeito de socialização pode ter efeitos patológicos, privando o menor de sua dimensão social, ou criando a subcultura do dissocial e do delinquente. O efeito malogro da integração social do menor frustra o destino do menor e afeta o futuro de uma geração.7 (JASON ALBERGARIA, p. 40)

Estabelece o art. 16 do ECA que “O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: I — ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços...

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