Pragmatismo judicial e igualdade

AutorLeandro Martins Zanitelli
Páginas169-193

Leandro Martins Zanitelli. Professor de Metodologia do Direito na Faculdade de Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter); Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O autor agradece ao UniRitter pela bolsa concedida para pesquisa docente. E-mail: leandroz@orion.ufrgs.br.

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1 Introdução

Nas últimas décadas, tem aumentado o interesse pela economia como ciência apta a auxiliar no aclaramento e solução de problemas jurídicos. A principal manifestação desse interesse é, sem dúvida, o que se conhece como análise econômica do direito ou “direito e economia” (law & economics).

A análise econômica do direito se ocupa com a relação entre normas jurídicas e eficiência, entendida esta como máximo bem-estar (ou, em alguns casos, riqueza) social1.

Trata ela, assim, de estabelecer quais regras levam a uma situação de eficiência (máximo bem-estar ou riqueza), considerando-se, para tanto, a influência das normas jurídicas sobre os indivíduos ou, em outras palavras, o incentivo resultante dessas normas. Assim, por exemplo, uma lei L1 acerca da responsabilidade civil dos fabricantes de automóveis pode se mostrar preferível, no que respeita à eficiência, a uma outra lei, L2, porque, ao contrário desta, induz os fabricantes a tomar cuidados de baixo custo capazes de prevenir acidentes de potencial gravidade.

No que se refere às decisões judiciais, a análise econômica pode recomendar algo um tanto distinto da prática usual, baseada na Constituição, nas leis em geral e nos precedentes. Ela sugere que os juízes se comportem de modo pragmático (ou conseqüencialista), preferindo, dentre as várias soluções possíveis, a que acarretará maior bem-estar (ou riqueza). O que importa considerar, pois, são os efeitos advindos de cada uma das soluções cogitadas2.

Duas razões podem levar à conclusão de que os resultados de uma prática judicial pragmática que persiga a eficiência não seriam tão diferentes dos observados atualmente, não tanto, ao menos, quanto talvez se imagine à primeira vista. A primeira delas é a de que aPage 170 obediência à lei e aos precedentes consista, muitas vezes, na solução eficiente, tanto em virtude do conteúdo das normas legais e decisões judiciais anteriores (isto é, porque essas normas e decisões são, por seu conteúdo mesmo, as que redundam em maior bem-estar), como pela segurança jurídica que se obtém ao segui-las (considerando-se, em tal caso, a importância da segurança jurídica para o bem-estar). Assim, é possível que um juiz pragmático disposto a lograr o máximo bem-estar social constate, com freqüência, que o melhor a fazer é respeitar a lei.

A segunda razão é a de muitos juízes já atuarem pragmaticamente, procurando decidir de modo a proporcionar maior bem-estar, embora, geralmente, não o admitam. A hipótese é a de que os juízes, sobretudo nos casos chamados “difíceis”, para os quais a lei não dá uma resposta clara, decidam levando em conta única ou primordialmente os efeitos das diversas soluções possíveis sobre o bem-estar social, ainda que, por algum motivo (por exemplo, a previsível oposição ao que se encararia como mais um indício da “politização” do poder judiciário), não o confessem em suas sentenças.

É lícito supor, não obstante, que uma prática judicial pragmática dedicada à promoção do bem-estar social conduziria a mudanças significativas. Nos E.U.A., país em que mais se desenvolveu até agora, a análise econômica do direito leva, constantemente, a propor alterações no direito vigente. Não é absurdo imaginar que o benefício trazido por essas alterações superaria, em muitas ocasiões, o dano à segurança jurídica que elas provocariam, especialmente se realizadas pela via judicial. Por fim, argumentos conseqüencialistas talvez até possam ser apontados como determinantes para algumas das decisões proferidas por juízes hoje em dia, mas não para todas e, dificilmente, para a maioria delas.

Este artigo trata de um dos possíveis óbices à análise econômica e ao pragmatismo judicial nela inspirado, a igualdade. Atente-se para o seguinte caso: X foi a um shopping center e, enquanto fazia compras, teve seu automóvel, que se encontrava na área de estacionamento do shopping, furtado. X pleiteia agora uma indenização. O juiz encarregado do caso, Y, é pragmático, e chega à conclusão de que o melhor para a sociedade é rejeitar o pedido de X, eximindo o shopping de qualquer responsabilidade pelo furto do veículo (essa solução satisfaria à maioria dos freqüentadores do shopping, que não usa carro para ir às compras e não teria de suportar a alta de preços devida ao pagamento das indenizações). Y sabe que, nos últimos anos, consumidores brasileiros em situação similar à de X têmPage 171 alcançado sucesso em suas ações de reparação de danos3, e que, portanto, a sentença de improcedência, sobretudo se não reformada nas instâncias superiores, criará incerteza a respeito da matéria. Ele crê, apesar disso, que os argumentos para a absolvição do shopping são muito fortes e conseguirão, depois de algum tempo, convencer os demais juízes. Por fim, Y avalia que a perda de bem-estar proveniente do abalo temporário à segurança jurídica será compensada, com vantagem, pelo ganho a ser obtido com a nova regra.

Admitindo-se que Y esteja correto quanto aos efeitos de sua decisão sobre o bemestar, poder-se-ia, não obstante, censurá-lo por dispensar a X um tratamento diverso daquele a que foram submetidos, em época recente, inúmeros outros consumidores vítimas de furto de veículo em área de estacionamento comercial. Ao conseqüencialismo se opõe, em tal caso, a igualdade.

Alguns autores4 têm posto em dúvida o valor da igualdade (no sentido do exemplo oferecido) como limite ao pragmatismo judicial. Esses autores dão a entender que, se o pragmatismo não for de aceitar, há de ser por alguma razão (como, por exemplo, o excessivo poder que com ele se atribui aos juízes) que não a da igualdade.

O propósito do presente estudo consiste em examinar as objeções à igualdade como obstáculo a uma prática judicial pragmática destinada à elevação do bem-estar5. Na primeira parte, depois de uma descrição mais minuciosa do princípio da igualdade em questão, expõem-se os ataques realizados contra ele por Alexander e Peters. Na segunda parte, esses ataques são refutados. A conclusão é a de que a igualdade há de ser levada em conta nas decisões judiciais, podendo, eventualmente, sobrepôr-se à busca de conseqüências tidas como desejáveis.

2 O princípio da igualdade e as objeções
2. 1 O princípio da igualdade

Na versão que interessa aqui, o princípio da igualdade é aplicável sempre que a situação de ao menos dois sujeitos for comparável e a um deles tiver sido dispensado certo tratamento t. Segundo esse princípio, o tratamento dado a um dos sujeitos envolvidos é uma razão para que o outro seja tratado da mesma forma.

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O princípio da igualdade tem especial importância na hipótese em que o tratamento dado ao primeiro dos sujeitos considerados seja injusto. Suponham-se dois sujeitos em mesma situação, A e B. O tratamento a que ambos possuem direito é -t. Entretanto, indevidamente, A obtém t. O tratamento recebido por A constitui agora uma razão para que B também seja agraciado com t, ainda que -t seja o tratamento a que, em outras circunstâncias, faria jus6.

O caso aludido no último parágrafo corresponde ao do exemplo do furto de veículo examinado acima. Razões independentes (na hipótese, conseqüencialistas) determinavam que X não fosse indenizado pelo furto de seu automóvel. Como, porém, outros consumidores em situação idêntica à de X foram vitoriosos em ações ajuizadas contra lojistas, a igualdade exige uma sentença favorável a X.

Antes de apresentar as objeções ao princípio da igualdade, convém fazer alguns esclarecimentos. Primeiro, observe-se que esse princípio pode ser aplicado de duas maneiras:

[...] a) como princípio “trunfo”, que prevalece sobre todos os demais; e b) como princípio propriamente dito (considerando-se o sentido mais em voga, atualmente, na teoria jurídica), do qual decorre uma simples razão, não necessariamente decisiva, para determinada decisão.

É importante esclarecer que as críticas a seguir indicadas se referem às duas formas de aplicação do princípio, e não apenas à primeira7. Assim, para rebatê-las, não é preciso demonstrar que a igualdade possui um valor incontrastável (como em “a”), mas, tãosomente, que ela é de algum valor (o que é o caso de “b”). Voltando ao exemplo do furto, o que importa é estabelecer se as decisões judiciais precedentes constituem, de fato, uma razão (decorrente do princípio da igualdade) para que X seja indenizado. Como não é preciso que tal razão prepondere em todos os casos, é perfeitamente possível admitir que sim e, ao mesmo tempo, sustentar que a ação proposta por X deve ser rechaçada.

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Outra distinção relevante é a que respeita às justificativas para aplicação do princípio da igualdade. Essas justificativas podem conferir à igualdade um valor em si mesma ou apenas como meio para a obtenção de um ou mais fins desejáveis independentemente dela. No caso de...

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