Os precedentes judiciais na família romanista
Autor | Gustavo Marinho De Carvalho |
Páginas | 73-109 |
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OS PRECEDENTES JUDICIAIS
NA FAMÍLIA ROMANISTA
2.1 PRECEDENTES JUDICIAIS NA FAMÍLIA
ROMANISTA
Como vimos no capítulo anterior, a principal fonte de direito dos
países que pertencem à família romana é a lei, norma jurídica geral e
abstrata editada pelo legislador127 que estabelece originariamente as con-
dutas a serem observadas pelos partícipes da sociedade. É o princípio da
legalidade, portanto, a espinha dorsal dos países filiados ao sistema roma-
no, mormente quando atinente ao ramo do Direito Público.
Recordemos que no item 1.2 do Capítulo anterior, ao tratarmos
da família romana, apontamos que a estrutura da regra de direito desta
família, calcada principalmente no uso de normas gerais e abstratas, tinha
por objetivo garantir o tratamento igualitário entre as pessoas e, em
função de sua anterioridade aos fatos por ela contemplados, permitir
127 Assinala Marcello Caetano que a generalidade e a abstração dão o sentido material de lei,
enquanto seu sentido formal refere-se ao órgão que a emite, no caso o Poder Legislativo;
CAETANO, Marcello. Princípios fundamentais do Direito Administrativo. Coimbra, Almedina,
2010, p. 80.
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GUSTAVO MARINHO DE CARVALHO
melhor conhecimento das regras de conduta vigentes na sociedade. A
lei, portanto, realizaria, no plano abstrato, os princípios da igualdade e da
segurança jurídica.128
Ressaltemos também que esta ideia de isonomia e previsibilidade
seria, em algumas situações, ilusória, pois, entendemos, na esteira de Rene
David,129 que quanto mais geral e abstrata uma norma jurídica, menos
clara a sua resposta a determinado fato do mundo fenomênico, o que
acarreta na atribuição ao magistrado (ou administrador) de maiores pode-
res de interpretação e aplicação do Direito. Se somarmos a esta situação o
entendimento disseminado de que o juiz possui absoluta e irrestrita liber-
dade de interpretar a lei de acordo com a sua convicção (= livre convicção
motivada), temos a receita completa para que sejam mitigados, no plano
concreto, os mencionados princípios da isonomia – por permitir a aplicação
desigual do Direito em situações substancialmente semelhantes,130 – e da
segurança jurídica – pois a aplicação desigual do Direito em casos subs-
tancialmente semelhantes aumenta a imprevisibilidade das ações estatais.131
Deveras, a experiência demonstra que o fato de uma lei reger deter-
minado assunto, não significa que ela será interpretada e, consequentemen-
te, aplicada corretamente, mesmo quando os fatos envolvidos possuam
entre si similitude substancial. Situações em que casos substancialmente simi-
lares não possuem respostas estatais iguais podem ser contadas aos milhares.132
128 De acordo com Rafael Valim, a anterioridade das leis – projeção eficacial das normas
jurídicas – é um dos elementos da primeira manifestação do princípio da segurança jurídica,
qual seja: a perspectiva da certeza; VALIM, Rafael. Princípio da segurança jurídica no Direito
Administrativo brasileiro. São Paulo, Malheiros Editores, 2010, p. 97-98.
129 Ibidem, p. 106.
130 Daí a razão de se falar em direito à igualdade de aplicação da lei. Sobre este tema, vide a obra
GARCIA, Juan Carlos Cabanas. El derecho a la igualdad en la aplicación judicial de la ley. Madrid,
Thomson Reuters, 2009.
131 São pertinentes as palavras de Karl Larenz: “Se os tribunais interpretassem a mesma
disposição em casos similares ora de uma maneira, ora de outra, tal estaria em contradição
com o postulado da justice de que os casos iguais devem ser tratados de igual modo, assim
como com a segurança jurídica que a lei aspira […]”; KARL, Larenz. Metodologia da Ciência
do Direito. 6. ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, p. 442.
132 “No Brasil, enfrentamos o problema do excesso de casos em que há diversidade de
interpretações da lei num mesmo momento histórico, o que compromete a previsibilidade
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PRECEDENTES ADMINISTRATIVOS NO DIREITO BRASILEIRO
A desigualdade e a insegurança causada pela disparidade na inter-
pretação e aplicação da lei (ou de qualquer outra norma jurídica) é um
dos fatores – a nosso ver o mais relevante – que fez com que os prece-
dentes judiciais ganhassem cada vez mais espaço nos países pertencentes
à família romana. Daí a razão pela qual se fala em aproximação dos sis-
temas jurídicos da família romanista e da common law.133
Ao analisarmos o sistema da common law, vimos que este sistema
não é incompatível com a estrutura da regra de direito dos países de
tradição romana, qual seja, a lei. A lei (statue law) é uma fonte importan-
te do Direito nos países que adotam a common law, com a diferença de
que serão os precedentes que traçarão a interpretação de determinado
enunciado normativo, de modo a mitigar a desigualdade e insegurança
jurídica oriundas das múltiplas interpretações possíveis. As statue laws,
como registramos, são envolvidas por um denso tecido uniforme chamado
common law.134
Ora, se no sistema da common law não existe incompatibilidade
entre o uso dos precedentes e as leis, por qual razão não se poderia uti-
lizar os precedentes no sistema romanista? Parece-nos que ambos podem
conviver harmonicamente,135 na medida em que não se restringirá a
e a igualdade. Há juízes de primeira instância e tribunais de segundo grau que decidem
reiteradamente de modo diferente questões absolutamente idênticas”; WAMBIER, Theresa
Arruda Alvim; op. cit., p. 36.
133 Michel Fromont, professor da Universidade de Sorbone, registra tal aproximação; ibidem,
p. 79.
134 RADBRUCH, Gustav; op. cit., p. 51. Neste mesmo sentido ATALIBA, Geraldo; op. cit.,
p. 19 e ALVIM, Theresa Arruda; op. cit., p. 43.
135 Ao voltarmos nossos olhos ao continente europeu, notamos que a convivência entre a lei
e os precedentes começa a ser uma realidade, a ponto de o Tribunal de Justiça das Comunidades
Europeias, na edição de dezembro de 2005 de sua revista, disponibilizada em seu sítio na
internet, na parte em que responde às perguntas mais frequentes sobre sua função, deixar
clara a força vinculante de seus precedentes. Eis a mencionada resposta: ¿Están obligados los
órganos jurisdiccionales nacionales a ajustarse a la interpretación del Tribunal de Justicia? Sí.
Cuando el Tribunal de Justicia declara que un acto comunitario no es conforme con los
Tratados o cuando interpreta el Derecho comunitario, esta resolución tiene fuerza vinculante
y se impone al órgano jurisdiccional que ha planteado la cuestión y al resto de los órganos
jurisdiccionales de los Estados miembros. Por tanto, los tribunales nacionales están vinculados
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