Precedentes e Legalidade

AutorArthur José Jacon Matias
Ocupação do AutorMestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público
Páginas145-186
Precedentes: Fundamentos, Elementos e Aplicação 145
Capítulo V
Precedentes e Legalidade
1 Conformação e significado do princípio da legalidade
O princípio da legalidade (rule of law) tem o seguinte con-
teúdo: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei. Essa, aliás, é a descrição normativa
instituída pelo art. 5º, II, da Constituição da República. Mas é um
enunciado universal. As constituições modernas asseguram essa
garantia fundamental. Por meio deste texto normativo, o legisla-
dor constituinte implantou pedra angular sobre a qual se tornou
possível edi car no plano normativo o Estado de Direito. A lei é
o instrumento de disciplinamento social e a garantia da liberda-
de. Ninguém pode ser constrangido a dar dinheiro ao tesouro
público em virtude da ocorrência de um fato econômico se a lei,
e somente a lei, não impuser esse dever. Ninguém será preso se
a lei não classi car certa conduta como capaz de impor a prisão
ao seu autor. É a lei o standard, a cidadela da justiça, o refúgio
seguro da cidadania. Mas o que é lei? Que lei é essa que restringe
direitos, de ne obrigações, e propicia ganhos negociais? Os
precedentes judiciais são lei, ou eles atritam com a lei? Do ponto
de vista constitucional, são os precedentes instrumento jurídico
adequado para veicular obrigações, criar direitos, extinguir
deveres e modi car relações jurídicas? Os precedentes podem
constranger alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa? A
resposta não é nada simples. Como sói ocorrer em dispositivos
constitucionais, o art. 5º, II, da Constituição da República, contém
em sua redação termos abertos,  uidos e polissêmicos, que devem
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receber, na operação de interpretação, integração e aplicação
da norma, a correspectiva determinação, para o escopo de es-
tabelecer exatamente o sentido e o alcance do direito fundamental
constitucional de que ora se cuida.262 Lei é uma palavra plurissig-
nicativa e requer uma atitude interpretativa.
Segue-se daí a relevância da compreensão correta do signi-
cado jurídico da palavra lei escrita no art. 5º, II, da Constituição
da República, e suas implicações no que toca à possibilidade de
instituição de fontes normativas que não coincidem necessaria-
mente com enunciados partidos do Poder Legislativo, o criador
por excelência das normas vertidas pelas leis.
In casu, o problema apresentado assume especial destaque,
à vista das modicações no ordenamento jurídico promovidas
pelos arts. 926, 927 e 928 do Código de Processo Civil, pelos
quais decisões judiciais deixam de ser normas jurídicas essen-
cialmente individuais, passando a regular comportamentos e denir
expectativas que transcendem os sujeitos da relação jurídico-
-processual, compondo, com isso, o arcabouço normativo
brasileiro, ao lado das leis em sentido formal e das demais normas
jurídicas gerais.
1.1 O princípio da legalidade: princípio ou regra?
Este livro tem se pautado pela busca do rigor termino-
lógico e cientíco. O uso dos termos deve ser bem depurado
para que não haja confusões de ordem categórica. A bem da
correta compreensão do assunto, não convém suplantar etapas
262 Sem bem que não se negue ser um tanto pretensioso o intento desta pesquisa, é
oportuno aqui relembrar os dizeres de Darcy Ribeiro: “A não ser na universidade,
onde encontrar a capacidade de repensar o mundo com sabedoria e liberdade,
de questioná-lo com a necessária amplidão e generosidade, antevendo
conceitualmente o futuro humano?” apud MACHADO, Antônio Alberto
Machado. Ensino Jurídico e Mudança Social. São Paulo: Expressão Popular, 2009,
p. 5.
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analíticas. Antes de identicar a norma que mana do texto do
art. 5º, II, da Constituição da República, cumpre ajustá-la a uma
das duas categorias normativas que se conhece. Tal operação é
útil, na medida em que, de acordo com a conclusão obtida, será
possível diagnosticar com maior dose de precisão o verdadeiro
m perseguido pelo dispositivo, o grau de proteção por ele
outorgado, e a eventual calibragem que se há de implantar para
ajuste dos precedentes ao signicado do princípio da legalidade.
(Além disso, a distinção será de grande utilidade quando esta
dissertação enfrentar as dicotomias discricionariedade judicial/
integridade do direito e entre argumentos de política e de princípio
no nº VI, item 3.2.2, infra.)
Certamente aqui não há espaço para imersões demoradas
no conceito de princípios e regras, nas distinções existen-
tes entre essas duas espécies, assim como nas consequências
eventualmente advindas dessas explanações. Mas é preciso dedi-
car algum tempo (pouco) à exploração desses conceitos para
ns eminentemente lógicos, pois parece inadequado examinar
questões particulares sem antes conhecer, ainda que não intei-
ramente, os temas gerais que a discussão comporta.
A cautela é necessária, pois, como adverte Humberto Ávila,
A distinção entre princípios e regras virou moda. Os trabalhos de
direito público tratam da distinção, com raras exceções, como se
ela, de tão óbvia, dispensasse maiores aprofundamentos. A separação
entre as espécies normativas como que ganha foros de unanimidad e.
E a unanimidade termina por semear não mais o conhecimento,
mas a crença de que elas são dessa maneira, e pronto.263
Topicamente, e à guisa de ilustração, recapitula-se o pensa-
mento de J. J. Gomes Canotilho, que, valendo-se de propostas
losócas de Ronald Dworkin, introduz uma distinção forte
263 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 46.
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