Prefácio

AutorProf. Dr. Celso Fernandes Campilongo
Páginas9-11
Prefácio
Em conhecida passagem, Niklas Luhmann apresenta problema simples e curioso. Se tivéssemos de apontar crité-
rios decisivos para saber quem deve vencer uma corrida de bicicletas, diríamos o quê? Provavelmente, responderíamos
coisas do tipo: o ciclista com maior preparo físico; o competidor com mais garra; o melhor conjunto entre o homem e
a máquina; o corredor mais dedicado aos treinos e outras justificativas desse gênero. Ninguém se atreveria a dizer que
o vencedor deveria ser defensor da dignidade da pessoa humana, democrata convicto, católico praticante, militante
socialista ou alguém que respeitasse o princípio da legalidade! Por mais admiráveis que sejam essas posturas, elas nada
teriam a ver com o ciclismo ou com o desporto. Aparentemente, o Direito está muito distante da corrida imaginária
do exemplo.
Digamos, continua Luhmann, que se descubra que o vencedor tenha participado da prova dopado! O Direito –
que, num primeiro momento, nada tinha com a estória – pode, então, ser invocado de maneira pertinente, desclas-
sificar o ciclista que praticou a ilicitude e redefinir o vencedor da prova. Para fazer isso, o sistema jurídico controla
um conjunto de procedimentos, fórmulas e racionalidades com limites demarcados. Como se sabe, o Direito pode
tratar de qualquer tema, contanto que em termos jurídicos. Caso tivesse a ilusão de conferir garra, capacidade atlética
ou preparo físico ao ciclista, certamente fracassaria. Os elementos próprios do desporto são regidos por outras racio-
nalidades e lógicas. Nem o Direito pode substituir o desporto, nem o desporto pode fazer as vezes do Direito. Tudo
elementar e óbvio, mas, às vezes, essas platitudes são solenemente ignoradas e a tentação de substituição de uma coisa
pela outra se insinua.
Os artigos aqui reunidos têm perfeita clareza da diferença entre Direito do Desporto, de um lado, e prática des-
portiva, de outro. Sabem que a ponte entre esses dois lados, da perspectiva jurídica, deve conter a dose certa de sen-
sibilidade para aquilo que é específico e peculiar do desporto e a medida justa das técnicas jurídicas para traduzir os
problemas do esporte em temas processáveis pela racionalidade do Direito.
A seleção das matérias deste livro é muito feliz e de extrema atualidade. Pela relevância econômica crescente do
esporte, é previsível que o Direito Econômico, o Direito Penal Econômico, os Direitos dos trabalhadores atletas e dos
atletas mirins, a governança e o compliance das sociedades desportivas, a arbitrabilidade dos conflitos jurídicos des-
portivos, o assédio moral e a proteção dos animais nas práticas desportivas sejam tratados com abrangência e profun-
didade. Chamam a atenção a maestria e a diligência com que as matérias são analisadas.
No primeiro artigo, Leonardo Fernandes dos Anjos e Felipe Augusto Loschi Crisafulli – organizadores da obra –
tratam da solidariedade como critério legitimador da negociação coletiva dos direitos de transmissão televisiva futebo-
lística. O pressuposto de que a concorrência entre os clubes de futebol possua, mais do que teleologia exclusivamente
econômica, também lógica desportiva específica – incerteza dos resultados e equilíbrio competitivo – demarca dife-
rença relevante. Nos campeonatos de futebol, time que invariavelmente vencesse todos os torneios tolheria o encanto
da competição: nem incerteza, nem equilíbrio. Há relação da interdependência e complementariedade, na forma de
rede – medidas as proporções, isso também ocorre entre os bancos, no sistema financeiro –, que impõe trocas, trans-
ferências, relações repetitivas e contatos necessários entre os competidores. Por isso, do prisma concorrencial, bancos
e clubes são, realmente, especiais. Nada, evidentemente, que afaste a aplicação da ordem jurídica concorrencial a essas
entidades.
No caso do Antitruste, não se pode perder de vista que esse Direito garante uma liberdade. Livre concorrência não
é igualdade de concorrência. Como dizia Isaiah Berlin, “liberdade é o que é, não outra coisa”. Se um time constrói
estádio novo, encontra patrocínios milionários, incentiva programas de torcedores, contrata jogadores e comissão
técnica de primeira linha, investe na base, monta centro de treinamentos completo e conquista muitos títulos, por
exemplo – da mesma maneira que agiria uma empresa organizada e eficiente –, o Antitruste nada tem a reprimir.
Nem garantir aos clubes rivais, em nome da livre concorrência, igualdade de meios. Caso uma equipe invista todos
os seus recursos na contratação e salário de um grande craque e relegue a plano secundário as demais frentes, ou seja,
se é mal administrada, não cabe ao antitruste garantir igualdade, incerteza de resultados e equilíbrio competitivo. O
que se reprime é o abuso do poder de mercado, e não o poder de mercado conquistado licitamente. O que se tutela

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