Prefácio - Gênero e Desigualdade no Trabalho Doméstico

AutorSayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva
Páginas9-17

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No momento em que tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição que propõe extinguir a diferenciação existente entre a idade e tempo de contribuição previdenciária de homens e mulheres para aquisição do direito à aposentação,1 a editora LTr faz chegar às mãos do leitor esta importante obra intitulada "Emprego doméstico no Brasil: Raízes históricas, trajetórias e regulamentação."

Organizado pelas pesquisadoras Cristina Pereira Vieceli, Julia Giles Wünsch e Mariana Willmersdorf Stefen - fruto de respeitável esforço de pesquisa no âmbito dos Programas de Pós-Graduação em Economia e em Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - o livro demonstra a permanência das profundas desigualdades entre homens e mulheres, e a extrema vulnerabilidade a que estão submetidas as trabalhadoras domésticas, em sua ampla maioria pobres e pretas, que compõem o terceiro segmento ocupacional mais importante do trabalho feminino no país. Ao explicitar as diferenciações entre as mulheres, sob a perspectiva da interseccionalidade,2 retoma a pauta alguns dos fundamentos das ações constitucionais airmativas (compensatórias/reparatórias), que continuam atuais na América Latina, cuja estrutura ocupacional ainda está marcada pela escravidão, pela segregação racial e de gênero. E o faz em uma ambiência na qual as vozes das mulheres são objeto de renovadas tentativas de silenciamento, sob uma conjuntura política que aprofunda os iltros às demandas dos movimentos feministas diante das barreiras estruturais que limitam as dinâmicas e os espaços democráticos.3 Ainal, como airma Flávia Biroli, o menor acesso à renda e ao tempo livre decorrente da divisão sexual do trabalho doméstico, remunerado ou não, impacta negativamente na participação política das mulheres e em seus padrões de atuação, diicultando sua ação pública para a defesa de suas questões.

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A estrutura do mercado de trabalho doméstico, sua organização jurídica e a caracterização ocupacional do peril das trabalhadoras - que se submetem e sofrem as agruras deste labor que não liberta, antes prorroga para o espaço da proissão as dores do fazer cotidiano das tarefas do lar, por mulheres condenadas a um labor invisível, rotineiro, contínuo e sem im, com intenso envolvimento emocional e pessoal - revelam como os discursos que airmam a existência de igualdade e emancipação com o abandono das posições de dependência do marido ou pai são justiicativas para redução dos direitos das mulheres de libertação ou diminuição do labor penoso pela aposentadoria, são ideológicos e reforçam as posições de poder e submissão. Se for certo que as conquistas dos movimentos feministas nos recentes trinta anos superaram as relações de dependência marital e familiar (colocando em questão, por exemplo, as pensões indeinidas para ilhas de militares), os novos estudos e abordagens sobre ocupação de espaços de trabalho e poder indicam a vulnerabilidade especíica que atinge as mulheres e que deve ser levada em consideração quando se discutem direitos e políticas públicas. O percurso da dependência à vulnerabilidade realça como o senso comum que vem sendo alimentado para justiicar que homens e mulheres contribuam igualmente para adquirirem o direito à aposentadoria é falacioso, ao menos para segmentos expressivos da população feminina brasileira, submetidos a trabalhos precários, instáveis e muitas vezes sem cobertura previdenciária.

A persistência de profundas desigualdades que incidem de modo cruzado especiicamente contra mulheres pobres, segregadas em uma estrutura ocupacional perpassada por hierarquias de poder e pela divisão sexual do trabalho, alimenta padrões de exclusão e marginalização que a reforma previdenciária poderá ampliar ao igualar os tempos de contribuição e aposentadoria para homens e mulheres no sistema geral de previdência social, exigindo um rigoroso regime contributivo de 25 anos, que afeta desproporcionalmente mulheres que não só têm uma maior dupla jornada, mas um grupo de mulheres inseridas em ocupações precárias, com baixa ou inexistente proteção social e representação institucional e política.

Quando Ulrich Beck cunhou a expressão da brasilianização, se referia não somente à crise do Estado social, como também ao crescimento do trabalho informal e com disseminação da precarização na Europa.4 Desde então, a dualização das sociedades se tornou crescente, com o aumento das desigualdades para o mundo. A dualização do mercado de trabalho se expande. É acompanhada de uma dualização do próprio mercado de trabalho feminino, trazendo novos desaios. No âmbito do feminismo, nos últimos anos, o debate passa a reconhecer a existência de uma oposição polarizada entre a parcela de mulheres com inserção proissional importante e que atingem posições hierárquicas especíicas no mercado de trabalho e a grande maioria de trabalhadoras relegadas à pobreza, com menor escolaridade e inserção subalterna.

A desvalorização da mão de obra da trabalhadora se transforma com a organização produtiva. Há uma reconiguração dos modos como se explicita a divisão sexual do trabalho nas relações de emprego, deinindo-as com características diversas daquelas que tradicionalmente foram estudadas,5 além da manutenção de antigos problemas como o do assédio

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moral e sexual; das remunerações variadas por metas e critérios de promoção que desprezam as diferenciações nas trajetórias pessoais marcadas pelas posições de gênero; da desconsideração das especiicidades da maternidade para efeito de proteção às mulheres, substituindo-as como sujeito pelas crianças; da intensiicação do trabalho que atinge a medição e restrição de uso do banheiro nos locais de trabalho, em controle extremo sobre os corpos femininos e seu acesso a lugares de sociabilidade não vigiada.

Para Danièle Kergoat, a transversalidade e a interpenetração constante das relações sociais permitem compreender o aparecimento dos nomadismos sexuais e da dualização do emprego feminino, novas turbulências que incidem sobre a divisão sexual do trabalho. Sob o signo da lexibilidade, criam-se nomadismos horários (para mulheres: tempo parcial ampliado, dispersão e concentração da jornada) e espaciais (para homens: deslocamentos por contratos temporários, canteiros de obras e por mudanças geográicas), reforçando "formas estereotipadas de relações sociais de sexo". O aumento das proissionais com capital econômico-social elevado e com interesses diferenciados aos daquelas atingidas por uma pobreza agravada pela precarização laboral é uma situação peculiar na história do capitalismo, argumenta.6

As análises sobre os nomadismos sexuais diferenciados têm como referência a estruturação do mercado laboral europeu e, particularmente, o francês.7 Naquele contexto, a lexibilização pela via da adoção das modalidades a tempo parcial se apresenta como um vetor que manifesta a estrutura da desigualdade no trabalho feminino. As pesquisas que se dedicaram a examinar a divisão sexual do trabalho, a reestruturação produtiva e de formas de gestão e a organização produtiva no capitalismo do atual milênio sugeriram que a desigualdade entre homens e mulheres aumentou com o crescimento do contrato a tempo parcial que atingiu as mulheres com maior frequência.

As fórmulas contratuais de exteriorização produtiva e a tempo parcial, presentes na periferia das atividades empresariais em regimes de acumulação lexível, acabaram absorvendo parte expressiva do trabalho feminino, para o que contribuiu a difícil conciliação entre casa e emprego assalariado, seja pela distribuição desigual das responsabilidades familiares no regime de casamento ou pelo exercício da maternidade por mulheres solteiras ou divorciadas.

No Brasil, a relação...

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