Preliminar Antropológico

AutorLuiz Fernando Coelho
Páginas33-72

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1. Ética, moral e direito

Os vocábulos ética e moral têm sido utilizados na linguagem ordinária como sinônimos, o que se deve às suas origens etimológicas. O primeiro vem do grego ethos e o segundo do latim mos, com significado equivalente: o modo comum de agir em função do passado, da tradição e do costume. Tanto ética quanto moral dizem respeito à correção da conduta na conformidade de certos modelos, elaborados ao longo da história e em torno dos quais há um consenso generalizado de que são os melhores. Ainda que se admita a insubmissão ou inconformismo de indivíduos ou grupos minoritários, entende-se que a compostura pessoal deve adequar-se aos padrões aceitos pela maioria. Tais bitolas permeiam não somente essa postura exteriorizada em ações, como também abrangem a totalidade da pessoa e açambarcam o pensamento, a razão e o sentimento. Pensar, desejar e agir contrariamente ao modelo ético geralmente aceito é considerado imoral e, na tradição religiosa, um pecado, que pode ser praticado por pensamentos, palavras e obras.

A ambivalência dos dois termos leva a que se confundam as implicações teóricas e práticas, pois existe uma normatividade moral que é objeto da ética como parte da filosofia e um comportamento moral que se presta a juízos de valoração. Além disso, esses significados se cruzam com outras noções já mais específicas: axiologia e deontologia. Axiologia é a filosofia

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dos valores e deontologia é o estudo da ética voltada para determinada práxis, cujos resultados convergem para um código de conduta profissional. É um entrecruzamento de significações dirigidas para espaços teóricos diver-sos. Assim, fala-se em ética jurídica, axiologia jurídica e deontologia jurídica, que subsidiam a moral do advogado e a ética das profissões jurídicas.

Essa concepção está na base da separação entre o direito e a moral, assunto que passou a envolver uma das mais significativas controvérsias doutrinárias desde o Iluminismo. Na verdade, toda a elaboração em torno da ideia universal do direito, tema central da especulação jusfilosófica iluminista, está calcada na segmentação entre o direito e a moral.

O tecnicismo do direito romano já estabelecera uma divisão prática entre os preceitos ideais da ética, sem a sanção da autoridade, e as regras do ius (direito), impostas coativamente pela autoridade pública. Os jurisconsultos romanos, entretanto, não conseguiram situar o ius sem envolver elementos conceituais próprios da moral. Definiram-no como a arte do bom e do equitativo, bem como a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu. Os famosos preceitos de Ulpiano são sobretudo normas morais: honeste vivere, alterum non laedere e suum cuique tribuere.* Embora os doutos procurassem diferenciar conceitos jurídicos de éticos, de certa forma já os distinguiam em virtude do formalismo e do tecnicismo que aos poucos passaram a envolver os jurídicos. Não obstante, já então os jurisconsultos procuravam um critério material, mediante a aná-lise do conteúdo das normas de conduta, para separar mais adequadamente os espaços normativos.

Na Idade Média a teologia absorve o conhecimento científico e filosófico. A conduta, seja nas relações sociais, seja na esfera individual, é encarada sob um prisma eminentemente religioso, gerando a impraticabilidade de qualquer distinção formal entre as diversas ordens normativas. A própria autoridade política é vista como extensão da autoridade divina.

* “Viver honestamente, não prejudicar os outros e dar a cada um o que é seu.”

As duas grandes correntes da filosofia medieval, a patrística e a escolástica, tratam dos âmbitos de normatividade tendo por referencial a moral cristã e o direito canônico. Tomás de Aquino alude ao conteúdo

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moral do direito em sua doutrina do bem, na qual há nítida dicotomia entre o bem comum, espaço do direito, e o bem individual, seara da moral. É uma antecipação da doutrina do forum internum e do forum externum, obra da especulação iluminista, critério que presidiu a disjunção, dentro da ética, no que diz respeito à moral e ao direito.

A principal característica da filosofia iluminista foi, então, o abandono das fundamentações teológicas prevalecentes, com a busca das bases racionais da ética, sob influência do racionalismo de Descartes, a partir dos séculos XVII e XVIII, mais propriamente com Christian Thomasius e Immanuel Kant.

Thomasius, no início do século XVIII, afirmava que a diferença essencial entre preceitos jurídicos e morais estaria em sua destinação: os jurídicos teriam como objetivo a regulação das relações do homem com seus semelhantes; os morais, a definição dos deveres do indivíduo para consigo. Ficaram assim estabelecidos os limites entre duas formas de normatividade. As regras jurídicas teriam caráter proibitivo: “Não faças a outrem o que não queres que te façam”; as morais seriam preceptivas: “Faze a ti mesmo o que queres que os outros a si mesmos façam”.

Uma vez constatada essa diferença, é possível fixar os critérios formais de dessemelhança. Os preceitos jurídicos são coativos por serem negativos, não podendo seu adimplemento depender da vontade isolada, transferindo-se essa dependência para o todo coletivo representado pela autoridade estatal. Já no tocante às normas morais, por serem afirmativas e prescreverem deveres, fica seu cumprimento submetido ao arbítrio de cada um, não tendo qualquer sentido a imposição coativa. Assim, o direito tem por princípio a justiça e se refere ao foro externo da pessoa; a moral tem por princípio a honestidade e se relaciona ao foro interno.

Immanuel Kant adotou essa divisão e considerou que o objeto da moral seriam os motivos da ação inerentes à consciência individual, e que o do direito, as mesmas ações em seu aspecto exterior. Assentou, desse modo, a segmentação da conduta ética em dois campos: o dos motivos das ações, objeto da moral, e o seu aspecto físico, objeto do direito.

O resultado da investigação principal a que então se dedicou dire-cionou-se ao problema dos fundamentos racionais dessas duas expressões

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da normatividade ética, ou seja, a busca de um conceito fornecido pela razão e independente da experiência para a definição normativa da moral e do direito. Analogamente às categorias da razão especulativa, tratava-se de formular um princípio de ação, um imperativo que pudesse funcionar como categoria, ou seja, anterior e desvinculado da experiência, um a priori normativo da razão prática, um imperativo categórico, que Kant identificou no dever inato de cada um a respeito dos outros. A regra fundamental da moral seria a exigência de que a máxima das ações pudesse transformar-se em lei universal; ou seja, o dever moral é um a priori a condicionar a moral das ações concretas.

Esta ilação expressou-se, no pensamento crítico de Kant, no seguinte aforisma: “Age sempre de modo tal que o motivo de tua ação possa valer em qualquer tempo como princípio de uma legislação universal.” Quanto ao direito, referindo-se à conformidade da ação com a lei, seu embasamento racional vinculou-se igualmente a um imperativo categó-rico, formulado como segue: “Conduz-te de modo tal que teu arbítrio possa coexistir com o arbítrio de todos, segundo uma lei universal de liberdade.” Tais são os enunciados dos imperativos categóricos da moral e do direito, respectivamente.

Para Kant, a moral é autônoma e representa uma disciplina da própria consciência individual; já o direito é heterônomo e consiste numa disciplina que provém do exterior e se impõe à consciência.

A teoria kantiana espelha o dualismo cartesiano, segundo o qual espírito e matéria são substâncias independentes, o que equivale a dizer que a vida interior e a atividade exteriorizada são esferas distintas e separadas. Em consequência, a ordem exterior, que corresponde ao direito, não pode ser mantida por agentes interiores. Ela se apoia exclusivamente na força externa, donde se depreende que o direito é caracterizado essen-cialmente pelo poder de coagir. Eis o início da legitimação ontológica da sanção, que passa a ser aceita não como fato histórico vinculado a uma forma de controle social, mas como exigência inexorável do próprio ser jurídico, já então identificado com o direito do Estado. Essa legitimação da violência institucionalizada como sanção foi assimilada pela concepção positivista do direito.

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Além do alcance ideológico, a teoria da separação entre as duas esferas de regulação prestou relevante serviço na defesa dos direitos pessoais em face do absolutismo do século XVIII, pois forneceu a base filosófica necessária para negar ao Estado todo-poderoso a autoridade de intervir em questões de consciência. Também respondeu a outra exigência ideológica, menos nobre: a legitimação de certa ordem social que se considerava idêntica a uma ordem jurídica, qual seja, o direito de uma classe social ascendente que tratava de monopolizar em seu interesse todos os espaços possíveis da normatividade social.

As ideias de Thomasius e Kant foram em parte ultrapassadas pela doutrina moderna, quando se passou a levar em consideração as ações internas, intenção e vontade, em que a manifestação da vontade, sem vício ou erro, é essencial para a validade dos atos jurídicos.

Em Jellinek, com sua tese do mínimo ético, o direito seria parte da moral, conjunto de normas éticas necessárias à vida social e, por isso, dotadas de certas características formais, definidas como um mínimo de moralidade. Uma formulação pictográfica dessa doutrina, atribuída a Bentham, representa a moral e o direito como dois círculos concêntricos, dos quais o que representa a moral tem o raio mais longo, o que importa dizer que toda norma jurídica é moral, mas que nem toda norma moral é jurídica. O direito seria uma espécie dentro do gênero moral.

A teoria do mínimo ético leva em conta que direito e moral se identificam em seus respectivos...

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