Prescrição do fundo de garantia do tempo de serviço: reflexos para além do novo entendimento

AutorAlexandre Antonio Bruno da Silva - André Studart Leitão
CargoDoutor em Direito pela PUC-SP. Mestre em Direito pela UFC - Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP
Páginas97-119

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Considerações iniciais

A ordem jurídica gravita em torno da segurança e da justiça, dois de seus valores essenciais. Para realizar a justiça, são previstos diferentes mecanismos, como a redistribuição de riquezas e a garantia do devido processo legal. A segurança, por sua vez, encerra valores e bens jurídicos que não se esgotam na mera preservação da integridade física, albergando conceitos fundamentais como a continuidade das normas jurídicas e a estabilidade das situações anteriormente controvertidas (BARROSO, 2001, p. 3).

Em nome da segurança jurídica, consolidaram-se institutos desenvolvidos historicamente, com destaque para a preservação dos direitos adquiridos e da coisa julgada. É nessa ordem de ideias que se firmou o conceito (artificial) de prescrição. Em termos sucintos e de forma geral, trata-se da estabilização das situações jurídicas potencialmente litigiosas por força do decurso do tempo (BARROSO, 2001, p. 3).

Esta influência do tempo, consumido do direito pela inércia do titular, serve a uma das finalidades supremas da ordem jurídica, que é estabelecer a segurança das relações sociais. Como passou muito tempo sem modificar-se o atual estado de coisas, não é justo que se continue a expor as pessoas à insegurança que o direito de reclamar mantém sobre todos, como uma espada de Dâmocles. A prescrição assegura que, daqui em diante, o inseguro é seguro; quem podia reclamar não mais o pode (DANTAS, 1977, p. 397-398).

Dessa forma, a prescrição é um instituto que, em nome da segurança nas relações sociais, torna inexigíveis parcelas não reivindicadas ao longo de certo prazo legalmente estabelecido. É figura que confere prevalência ao valor segurança, em detrimento do valor justiça. A ordem jurídica assegura a busca, pelo titular, da proteção estatal a seus interesses, mas desde que o fazendo em um prazo máximo fixado, de maneira a não eternizar situações indefinidas no âmbito social. Se o justo não é perseguido em certo tempo, fica a ordem jurídica com a segurança, em favor da estabilização social (DELGADO, 2016, p. 261-262).

Deve se ressaltar que a prescrição é regra em todos os campos do direito, sendo que a imprescritibilidade é situação excepcional. Nesse sentido, a própria Constituição Federal de 1988 enumera as hipóteses de imprescritibilidade, garantindo, em sua sistemática, o princípio geral da perda da pretensão pelo decurso de tempo.

No âmbito do Direito do Trabalho, o instituto da prescrição sempre mereceu tratamento diferenciado. Normas específicas foram criadas e questões relativas à aplicabilidade direta das regras gerais do direito civil e processual civil serviram de campo fértil para várias discussões. Verifica-se, no entanto, nos últimos anos, o surgimento de posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários que pugnam pela unificação.

O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), desde a sua criação, originou uma série de questões jurídicas. Foi necessário algum tempo para que a sua

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natureza jurídica fosse sedimentada como um direito de cunho trabalhista. Definida a sua natureza, reuniram-se as condições para a revisão do antigo prazo prescricional de 30 (trinta) anos.

O objeto central do estudo será discutir os fundamentos apresentados para alteração do prazo de prescrição para a exigência dos créditos relativos ao FGTS e os possíveis efeitos práticos dessa decisão. Com esse objetivo, inicialmente, serão apresentadas as regras gerais da prescrição no âmbito trabalhista..

1 A prescrição no direito do trabalho

Roberto de Ruggiero justifica que o tempo produza a perda de um direito, ao indicar que o ordenamento não tutela quem não exerce o seu direito, mostrando que o despreza, que não o quer conservar. Segundo ele, é de interesse da ordem social que, depois de um dado tempo, desapareça qualquer incerteza nas relações jurídicas, bem como toda possiblidade de contestação ou pleito daquele direito (RUGGIERO, 1999, p. 412). Câmara Leal (1982, p. 16) arremata esse entendimento, elencando como fundamentos da prescrição:

O interesse público, a estabilização do direito e o castigo à negligência; representando o primeiro o motivo inspirador da prescrição; o segundo, a sua finalidade objetiva; o terceiro, o meio repressivo de sua realização. Causa, fim e meio, trilogia fundamental de toda instituição, devem constituir o fundamento jurídico da prescrição.

A prescrição é um fenômeno produzido pelo decurso do tempo, que tem como efeito a consolidação (aquisição) ou a extinção (perda) de situações jurídicas. Dessa forma, o instituto da prescrição surge em duas espécies, a prescrição aquisitiva e a prescrição extintiva, que são nitidamente distintas e disciplinadas de forma separada. No direito brasileiro, a prescrição aquisitiva foi tratada com o nomen juris de usucapião, enquanto o termo vocabular prescrição ficou restrito à prescrição extintiva (FARIAS; ROSENVALD, 2015).3

As regras gerais concernentes à prescrição estabelecidas essencialmente pelo Código Civil aplicam-se, em linhas gerais, à prescrição trabalhista. Entretanto, o direito do trabalho tem firmado regras específicas. A especificidade é encontrada em temas como prazos prescricionais dos direitos trabalhistas, critérios de contagem da prescrição, momento de arguição da prescrição e âmbito de aplicação no direito trabalhista da prescrição intercorrente.

O Direito do Trabalho brasileiro adere ao conceito de prescrição encontrado no Código Civil Brasileiro de 2002, tratando-a como a perda da pretensão, que é o

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poder de exigir, pelas vias judiciais, a prestação descumprida pelo devedor. Entretanto, segundo parte da doutrina e da jurisprudência, a prescrição no Direito do Trabalho, por versar sobre matéria de cunho patrimonial, não deve ser conhecida ex officio pelo Juiz. Esse foi o entendimento, mesmo com a alteração do art. 219, § 5º, do Código de Processo Civil de 1973, que prescreve que o juiz acate essa prescrição e da revogação do art. 194 do Código Civil Brasileiro de 2002, que impedia o uso dessa prerrogativa.

Nesse entendimento, as normas gerais de prescrição só seriam aplicáveis ao Direito do Trabalho quando compatíveis com os seus princípios e regras. A jurisprudência tem se inclinado pela incompatibilidade desses dispositivos legais com a ordem trabalhista (arts. e 769, da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT) (DELGADO, 2016, p. 289).

RECURSO DE REVISTA DO RECLAMANTE – PRESCRIÇÃO DE OFÍCIO
ART. 219º, § DO CPC – APLICABILIDADE AO PROCESSO DO TRABALHO. A alteração do artigo 219, , do CPC, efetuada pela Lei n.
11.280/2006, autoriza o Juiz a declarar, de ofício, a prescrição. O instituto, no entanto, não se mostra compatível com o processo do trabalho, em razão de princípios e peculiaridades que o regem, dentre outros, a indisponibilidade de alguns dos direitos do empregado, a natureza alimentar do salário, e a própria desigualdade econômica entre empregados e empregadores, não presentes na relação jurídica disciplinada pelo Código de Processo Civil. Recurso de revista conhecido e provido (TST. RR - 501700-13.2006.5.09.0019, Relator Ministro: Milton de Moura França, 4ª Turma. Julgado em 11.10.2011, DEJT 28.10.2011) (BRASIL, 2011).

RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI N. 11.496/2007. RECURSO DE REVISTA. PRESCRIÇÃO. PRONÚNCIA DE OFÍCIO. IMPOSSIBILIDADE. INCOMPATIBILIDADE DO ART. 219, parágrafo 5º, DO CPC COM O PROCESSO DO TRABALHO. O art. 219, parágrafo 5º, do CPC, que possibilita a pronúncia de ofício da prescrição pelo juiz, não se aplica subsidiariamente ao Processo do Trabalho, porque não se coaduna com a natureza alimentar dos créditos trabalhistas e com o princípio da proteção ao hipossuficiente. Precedentes desta Subseção Especializada. Recurso de embargos conhecido e não provido (TST. E-RR - 82841-64.2004.5.10.0016, Relatora Ministra: Dora Maria da Costa, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais. Julgado em 20.02.2014, DEJT 07.03.2014) (BRASIL, 2014).

O Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015) manteve a prerrogativa judicial de pronúncia da prescrição, mas, efetivamente, como simples faculdade do julgador (art. 487, II, c/c art. 332, § 1º, ambos do CPC/2015). Além disso, deve se seguir a regra prudencial, que determina que “a prescrição e a decadência não serão reconhecidas sem que antes seja dada às partes oportunidade de manifestar-se”, conforme o art. 487, do CPC/2015 (BRASIL, 2015).

Maurício Godinho defende que, ao determinar a atuação judicial, em franco desfavor de direitos laborais, a regra civilista entra em choque com vários princípios constitucionais. Citam-se como os princípios mais atingidos o da valorização do trabalho e do emprego, o da norma mais favorável e o da submissão da propriedade

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à sua função socioambiental, além do próprio princípio da proteção (DELGADO, 2016, p. 289). Segundo o autor, mesmo que se acredite que essa regra seja compatível com o Processo do Trabalho, está claro que ela deve atuar dentro de certos limites. Como previsto no art. 487, CPC/2015, deve ser concedida prévia vista à parte contrária para manifestação, seja porque não se conhece de prescrição não arguida na instância ordinária (Súmula 153, TST), seja porque não pode ser efetivada em recurso de revista e na fase de liquidação/execução (DELGADO, 2016,
p. 289).

Ressalte-se, entretanto, que o entendimento não se encontra pacificado. Gustavo Garcia (2016, p. 1275) assinala que, ainda que pertinentes as críticas apresentadas contra a aplicação da prescrição ex offício, elas devem ser entendidas como meras críticas a uma lei já aprovada, servindo no máximo como sugestão ao legislador, não se podendo confundir crítica ao direito...

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