A prescrição trabalhista

AutorAugusto César Leite de Carvalho
Ocupação do AutorPossui mestrado em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará e doutorado em Direito das Relações Sociais
Páginas104-126

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6. 1 A prescrição e o temor de propor a ação

O trabalhador brasileiro é titular de uma gama de direitos que não nasce, o mais das vezes, da negociação coletiva por meio da qual se comprometeria diretamente o seu empregador. Nasce da lei – e assim sucede, talvez, porque o modelo de organização sindical não inspire coniança ou não demonstre capilaridade suiciente para fomentar a representatividade dos atores sociais. Ou decerto porque o grau de assimetria na relação laboral ainda reclame, entre nós, alguma intervenção estatal protetiva e compensatória.

O fato é que o empregador nem sempre se revela comprometido com o cumprimento da ordem jurídica marcadamente heterônoma, sequer reconhecendo que a representação política de seus interesses predomina, como invariavelmente predominou, na elaboração das leis trabalhistas cuja obser-vância e respeito estaria a recusar. Porque se envolve em uma teia de irregularidades para desaiar a ordem que ajudou a construir, mas entende ilegítima, a relação trabalhista no Brasil parece fadada a promover a insatisfação dos que a protagonizam. Não raro, nela subjaz um conlito latente que mais adiante se transforma em conlito judicializado.

A propositura de ação judicial seria o meio de instaurar, ou quem sabe restaurar, a harmonia entre os que contendem em silêncio, o empregador e o empregado que, desavindos, insistem em interagir cordialmente, ambos movidos pela intenção de preservar o vínculo, mas preservá-lo por razões diver-sas, paradoxalmente deinidas pela ideia de subsistência: o empresário persegue a continuação de seu negócio; o empregado, a própria sobrevivência.

Há, contudo, de os direitos não se autarquizarem na vida social sem um plexo de garantias que os torne efetivos. Direitos que não se mostram aptos à realização apresentam-se como “direitos” por mera concessão verbal, pois tolerante em demasia é a linguagem jurídica. Mesmo a ação judicial, uma garantia por deinição, reclama garantias de segundo nível, vale dizer, mecanismos jurídicos que protejam aqueles que a exercem. Regra geral, cometem-se aos atores políticos – responsáveis pelas salvaguardas da atuação do Estado – o oferecimento e a institucionalização dessa rede de proteção que aconchega os que fazem valer os seus direitos subjetivos.

Em outra ocasião, e após estudo de algum fôlego acadêmico, já dissemos que a jurisprudência constitucional espanhola instituiu a garantía de indenidad, vale dizer, a imunização de todos quantos exerçam um direito fundamental, inclusive o direito de ação judicial trabalhista. Protege-se o empregado contra a represália patronal que consista em ato de retaliação ou mesmo em ato de dispensa. O trabalhador europeu, por obra de construção jurisprudencial que mais tarde se converteu em lei e em directiva da União Europeia, tivera assim assegurado o seu retorno ao emprego sempre que dispensado em virtude de ousar a propositura de demanda judicial durante a relação empregatícia.

É incipiente, porém, a evolução jurisprudencial a respeito, no Brasil. Se cuidamos da ação judicial individual, a verdade é que o instituto está às voltas com um pensamento jurídico que conina o seu uso, contraditoriamente, aos destituídos de emprego. Quem propõe ação perante a Justiça do Trabalho não é, regra geral, o empregado, mas aquele que deixou de sê-lo. São de uma tibieza inquietante as tentativas, no campo doutrinário e sobretudo jurisprudencial, no sentido de outorgar cidadania aos trabalhadores que ainda sofrem a lesão, vivenciando-a resignadamente.

Mas ainda mais perversa, na perspectiva do empregado que suportou a violação de seus direitos em meio a uma relação trabalhista de médio ou longo tempo, é a percepção, ao desenlace do vínculo, de estarem deinitivamente consolidadas as alterações contratuais lesivas que contam mais de cinco anos, não importando se o descumprimento do contrato, pelo empregador, repercutiu, insidiosamente, por todo o restante da relação laboral. Não foi dado ao trabalhador o direito de reclamar sem expor-se ao risco – em verdade, à contingência quase inexorável de perder o emprego – e agora lhe tratam

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como um credor relapso, daqueles que negligenciam a luta por seu direito em razão de preguiça ou inapetência. A ordem jurídica e seus operadores fazem caso do medo que o empregado tem de apre-sentar sua demanda judicial enquanto o vínculo e o conlito ainda existem, porque o medo não é, neste mundo onde grassa a covardia, um valor jurídico.

Decerto que se diria inviável relevar a segurança jurídica no direito do trabalho, dado que estaríamos a cuidar de valor contemplado em todo o ordenamento, nas relações civis de ordem pública ou privada. A segurança jurídica – que é, na hipótese e em última análise, a segurança patrimonial do devedor – não poderia, segundo se diz, ceder lugar à eterna incerteza sobre o dia e hora em que o trabalhador enfrentaria ainal o seu empregador, desvestindo-o da potestade exercida sobranceiramente no ambiente empresarial para desaiá-lo, testa a testa, à mesa igualitária da audiência trabalhista.

A pretexto de assim render ensejo à pacificação social, a racionalidade jurídica ignora a irre-nunciabilidade dos direitos sociais adquiridos e o receio sobremodo compreensível de exercê-los. A prescrição extintiva é o modo como se manifesta a segurança jurídica, incidindo no sistema trabalhista desde a matriz constitucional: ao consagrar o direito de ação na Justiça do Trabalho, o art. 7º, XXIX, da Constituição somente é lembrado pela sua parte inal, a parte em que restringe esse direito às pretensões exigíveis há menos de cinco anos, na condição de que não se passem dois anos a partir da dissolução contratual252.

Houve quem defendesse, não sem boa dose de razão, que os cinco anos não prescritos seriam aqueles que antecederiam o inal do liame empregatício, sem inluência de quando fosse proposta a ação253. Não há aqui, porém, a defesa de tal ponto de vista, inclusive porque se justifica, também com base em critério de razoabilidade, que se observe, quanto ao prazo quinquenal, a adoção do princípio actio nata: a prescrição lui a partir do nascimento da pretensão. Na prática, o quinquênio é contado retroativamente a partir do ajuizamento da ação, salvando-se dos efeitos da prescrição as prestações exigíveis após esse marco temporal.

6. 2 Actio nata como termo inicial do prazo prescricional de cinco anos

Não obstante a clareza dessa ideia (actio nata), importa ixar dois pontos que, embora correlatos, nem sempre se apresentam consensuais. O primeiro deles é quase um truísmo: se o salário de cada mês somente é exigível no quinto dia útil do mês subsequente (art. 459, parágrafo único, da CLT), a pretensão relativa a todas as prestações salariais mensais somente prescreve cinco anos após esse prazo previsto para o seu pagamento (ex: a ação proposta em 3/mar/2018 porá a salvo da prescrição quinquenal também o salário do mês de fevereiro de 2013, de resto exigível no quinto dia útil de março de 2008).

O segundo ponto de aparente dissensão é concernente à possibilidade de uma tutela jurisdicional declaratória gerar pretensões condenatórias imunes à prescrição. Por exemplo, debate-se sobre estar

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ou não prescrita a inclusão, no cálculo de adicional por tempo de serviço devido no período não alcançado pela prescrição, do tempo de trabalho que, sendo reconhecido em juízo, situar-se-ia em período muito anterior, alcançado pela prescrição. A dúvida: se o tempo de trabalho é anterior ao marco da prescrição quinquenal, a pretensão atinente ao reconhecimento de vínculo de emprego nesse tempo longevo somente poderia ser objeto de pretensão de natureza declaratória e, portanto, questiona-se sobre ser possível essa tutela meramente declaratória gerar uma pretensão condenatória não prescrita (a saber: o cômputo desse tempo de serviço no cálculo do adicional referido, especialmente no que toca ao adicional devido nos cinco últimos anos, não atingidos pela prescrição).

É certo que apenas as pretensões condenatórias estão sujeitas à prescrição extintiva. A pretensão declaratória não prescreve. Mas, a bem ver, a questão posta não trata da prescrição de pretensões declaratórias, nem da imprescritibilidade de pretensões condenatórias. Ao que parece, confunde-se o termo inicial da prescrição – que é, regra geral, a exigibilidade da pretensão – com o fato gerador dessa mesma pretensão.

O direito do trabalho nunca deu guarida a essa confusão: ao tempo em que se postulava a indenização de antiguidade (art. 478 da CLT), calculava-se essa parcela em atenção a todo o tempo de serviço, décadas ou vintenas de trabalho que estariam no período alcançado pela prescrição (à época bienal). Não importava: desde que ajuizada a ação no biênio...

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