A preservação da imagem da criança institucionalizada e o direito à visibilidade

AutorSávio Bittencourt
Páginas481-499

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1. Introdução

Uma questão que já se faz merecedora de profunda reflexão é o regime de proteção à imagem da criança e do adolescente. Em primeiro lugar, porque existe na sociedade uma prática pretensamente protetiva que lida com muita reserva com a imagem de crianças: é comum que ao serem publicadas fotos ou filmagens haja notável preocupação em não lhes revelar a identidade. A imprensa brasileira segue rigidamente um protocolo que, ao trabalhar com matérias em que as crianças sejam seu assunto, procuram mostrar imagens sem a exibição de seu rosto, seja pelo ângulo escolhido para colhê-la, seja por aplicação de artifícios tecnológicos que impeçam sua clara visualização.

Em segundo lugar, se faz mister discernir com clareza quais os limites estritos em que tal proteção seja necessária e juridicamente autorizada. É fundamental que a sociedade saiba o que é permitido em termos de exposição de imagens de crianças e adolescentes, com uma severa revisão dos conceitos jurídicos que cercam o tema, para que se possa fazer juízo crítico da práxis adotada pelos meios de

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comunicação, verificando-se sua utilidade e cabimento. Uma revisão da doutrina e da jurisprudência para açodar o espírito questionador que mantém o Direito vivo como Ciência e permitir que se vislumbre

Em terceiro lugar, mas não menos importante, é imprescindível que se verifique, à luz da Constituição Federal e da legislação, nesta ordem, se a proteção ao direito da imagem de crianças e adolescentes afeta ou se relaciona com outros interesses juridicamente protegidos deste grupo para saber se tais interesses impõem freios e contrapesos logicamente concebidos para esta proteção. Em outras palavras, é necessário se verificar se o exercício da preservação das imagens, privacidade e identidade das crianças impede ou dificulta o exercício legítimo de outros direitos seus, que dependem de sua visibilidade e identificação para que possam ser defendidos, definidos ou constituídos. É imperioso que se perscrutem quais os limites entre a proteção justa e necessária da imagem da criança e o aniquilamento social que se pode provocar por sua indevida ocultação.

Com efeito, as perguntas que podem ser exordialmente oferecidas, com o intuito de instigar os espíritos, são as seguintes: Qual a proteção jurídica à imagem da criança e do adolescente no Brasil? Quais são seus limites práticos? O que poder ser mostrado e de que forma? O que precisa ser preservado? Como tal proteção se relaciona com outros direitos destes sujeitos, sobretudo aqueles que para serem protegidos necessitam de uma dada visibilidade de sua realidade? Como funcionam os limitadores que incidem sobre o conhecimento da realidade da criança e do adolescente? Qual a utilidade de serem preservados dados relativos aos processos e procedimentos judiciais e administrativos que versem sobre direitos infanto-juvenis? Como se poderá assegurar a visibilidade das crianças e adolescentes para tentar prover direitos importantes que dependam dela?

Evidentemente há um aparente confronto entre a prática preservacionista da imagem e a possibilidade da criança ser vista e de sua realidade ser acessível publicamente. Esta tensão precisa ser aqui desfeita a partir do clareamento do que pode ou não ser conhecido e da forma que esta realidade deve ser mostrada. Não é exatamente um esforço fácil, pela nódoa de mal entendidos e costumes tendentes a esconder quase que absolutamente certo contingente de crianças.

Assim, este artigo pretende se debruçar sobre tais inquietações, partindo de uma releitura da literatura jurídica sobre o tema da preservação da imagem de crianças e adolescentes, incluídas suas relações com o direito à intimidade e à privacidade, seguida da análise do posicionamento da jurisprudência em casos

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concretos em que o direito de imagem seja tratado, ainda que como objeto secundário das causas. Esta revisão é importante para fixar os conceitos que hodiernamente estão estabelecidos e vêm sendo aplicados judicialmente, para que se cumpra a primeira máxima do método cartesiano de “nunca aceitar como verdadeira nenhuma coisa que não se conheça evidentemente como tal, isto é, em evitar, com todo o cuidado, a precipitação e a prevenção só incluindo nos seus juízos o que se apresente de modo tão claro e distinto ao seu espírito, que você não tenha razão alguma para duvidar”.2Destarte, far-se-á uma revisão breve do direito à imagem e das estratégias de sua proteção em vigor no Direito Brasileiro, para, em seguida, se examinar a proteção específica da imagem da criança e do adolescente. Ato contínuo, passar-se-á ao contraponto da preservação da imagem para se tratar diretamente da questão da criança institucionalizada e a necessidade de que ela seja enxergada pela socie-dade para que tenha determinados direitos garantidos, passando-se pela análise jurídica desta visibilidade e de estratégias para que ela seja garantida. Ao final, pretende-se concluir com um delineamento entre as necessidades de preservação da imagem e de visibilidade da realidade de crianças e adolescentes, como encerramento do esforço do método dedutivo que se passa a empregar.

2. A imagem como bem jurídico

No dizer de Adriano de Cupis, “existem certos direitos sem os quais a personalidade restaria uma susceptibilidade completamente irrealizada”3, sendo absolutamente essenciais para a existência de outros direitos decorrentes e da própria pessoa que os titulariza. Em outras palavras, os direitos da personalidade são aqueles dos quais depende a pessoa humana para ser entendida com tal, em sua plenitude de subjetividade de direitos. São direitos essenciais, inerentes à dignidade da pessoa humana, que despertam o interesse público em sua proteção. Na doutrina de Orlando Gomes, a personalidade (das pessoas naturais) tem seu conceito assim definido:

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A personalidade é um atributo jurídico. Todo homem, atualmente, tem aptidão para desempenhar na sociedade um papel jurídico, como sujeito de direito e obrigações. Sua personalidade é institucionalizada num complexo de regras declaratórias das condições de sua atividade jurídica e dos limites a que se deve circunscrever.4Com efeito, ao se tratar de direito da personalidade, tem-se uma realidade reveladora do interesse do indivíduo em sua manutenção e respeito e, por outro lado, um intenso interesse social de que a pessoa seja respeitada na sua plenitude, em seu módulo mínimo existencial. Daí decorre sua natureza intransmissível, indisponível e irrenunciável: vale a cláusula de proteção máxima do Direito, por se tratar de interesse que se manifesta na individualidade, se realizando na pessoa humana, mas que decorre da proteção devida e desejada por toda a coletividade. O saudoso Professor Caio Mário da Silva Pereira sobre o tema escreveu:

A concepção dos “direitos da personalidade” sustenta que, a par dos direitos economicamente apreciáveis, outros há, não menos valiosos, merecedores de amparo e proteção da ordem jurídica. Admite a existência de um ideal de justiça, sobreposto à expressão caprichosa de um legislador eventual. Atinentes à própria natureza humana, ocupam eles posição supra-estatal, já tendo encontrado nos sistemas jurídicos a objetividade que os ordena, como poder de ação, judicialmente exigíveis.5A Constituição Federal, ao elencar a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental da República, em seu primeiro artigo, acoroçoou a concepção dos direitos da personalidade, permitindo que se interprete a legislação brasileira a partir da ideia matriz de que tudo o que se relaciona com a dignitatis personae humanae seja compreendido ontologicamente como direito da personalidade, e, como tal, dotado da mesma esfera protetiva6. A Lei Maior estipulou um princípio generoso, vetor interpretativo das normas infraconstitucionais, que propõe

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exercício amplo de reconhecimento dos direitos da personalidade, já que as tipologias tradicionais agora devem se render a ideia de dignidade como patamar mínimo da existência da pessoa, em seus aspectos físico e psíquico.

Nesta linha de raciocínio, as classificações tradicionais dos direitos da personalidade estarão submetidas à permanente revisão crítica para que possam ser questionadas em sua efetividade: um rol oferecido pela doutrina, ou pela própria legislação, não pode ser tomado como taxativo. A menção específica da ocorrência de determinados direitos da personalidade, tomados em concreto, não pode impedir o reconhecimento de outros, ainda que não suscitados anteriormente, que se revelem como essenciais ao existir humano digno. O aparecer histórico de direitos da personalidade comprova esta assertiva, eis que a “humanidade” dos seres vai se compreendendo com mais vigor e profundidade com a experiência da vivência social. Daí ser comum a “descoberta” de novas feições de direitos da personalidade que antes não eram percebidas.

Assim, o Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, em sua fundamentalidade, permite a construção de novos direitos da personalidade independentemente de sua previsão legislativa, o que vêm se acentuando no campo do Direito de Família, com o reconhecimento de direitos não explícitos nas regras atuais que podem ser inferidos a partir da aplicação do referido Princípio e das regras integrativas da hermenêutica. O que valerá como norte para o esforço de garantia do direito, em função da necessidade de seu delineamento, é a proteção da dignidade da pessoa, entendida como uma unidade de construção histórica.

Decorre desta natureza um presumido equilíbrio entre os direitos da personalidade. Sendo trazidos ao mundo pela mesma fonte, a preservação da dignidade, não pode haver, a priori, uma escala de importância ou prioridade...

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