Presidentes fracos: legados de perda de poder para o cargo da presidência da república

AutorLuiz Carlos Penner Rodrigues da Costa
Páginas165-224

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PRESIDENTES FRACOS : LEGADOS DE PERDA DE PODER PARA O CARGO DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

LUIZ CARLOS PENNER RODRIGUES DA COSTA

Resumo


O art. 62 da Constituição dá à Presidência da República o poder de editar medidas provisórias em caso de urgência e relevância. Este é reconhecido como o poder mais expressivo à disposição de presidentes da República. Ocorre que tal airmação desconsidera que poderes são disputados no decorrer do jogo da Separação de Poderes — no que chamamos conlitos sobre regras (oposto aos conlitos dentro das regras) e que podem gerar mudanças endógenas na alocação de autoridades entre os atores políticos. Considerando esta perspec-tiva luida da Separação de Poderes, este trabalho pretende demonstrar que presidentes fracos em determinado contexto podem gerar legados de perda de poderes para o cargo da Presidência da República — afetando os futuros presidentes que ocuparão aquele cargo.

Palavras-chave


Separação de Poderes. Poderes Presidenciais. Impeachment. Congresso. Dilma.

Abstract


Article 62 of the Constitution gives the Presidency of the Republic the power to use its decree power in case of urgency and relevance. This is recognized by the literature as the most expressive power available to presidents of the Republic. However, that assessment ignores that powers are disputed during the game of the Separation of Powers — in what we call conlicts about rules (as opposed to con-licts within the rules) and that can generate endogenous changes in the allocation of authorities between the political actors. Considering this luid perspective of the Separation of Powers, this paper intends to demonstrate that weak presidents in a certain context can generate legacies of loss of powers for the ofice of the Presidency of the Republic — affecting the future presidents who will occupy the ofice.

Keywords


Separation of Powers. Presidential Powers. Impeachment. Congress. Dilma.

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1 Introdução


O impeachment da presidente Dilma Rousseff gerou um aumento de interesse acadêmico sobre as relações entre o Executivo e o Legislativo. O ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, teve um papel essencial no despertar desse interesse, dado que foi um dos principais articuladores do impeachment1. Eduardo Cunha analisava até onde poderia aumentar seus pró-prios poderes de inluenciar no processo, tendo por vezes conseguido ampla margem de liberdade — podendo, por exemplo, escolher partes da denúncia que iriam prosseguir e partes que seriam arquivadas2—, mas também encontrou seus limites em decisões do Supremo Tribunal Federal, como a proibição da chapa avulsa3e deinição de votação do impeachment alternadamente de Norte a Sul4.

Estas foram disputas sobre poderes não deinidos em todas as suas minú-cias pela Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), leis ou procedimentos internos das Casas do Congresso. Nestes casos, há amplo espaço de manobra que pode ser aproveitado por atores que enxerguem nestas lacunas a possibilidade de aumentar seus próprios poderes (self-aggrandizement), criando para si poderes informais que podem vir a ser reconhecidos e respeitados por todos os atores.

Este trabalho parte desta constatação para demonstrar que um presidente fraco ocupando o cargo da Presidência da República pode gerar derrotas políticas que resultem em modiicações sobre a alocação de poderes e que geram conse-quências para além de seu mandato — transformando-se em “legados” para o próprio cargo da Presidência da República. O argumento é dividido em três etapas.

Primeiro, os conlitos entre Poderes muitas vezes são moldados não ape-nas em termos da aprovação de uma determinada policy, mas também sobre quem é competente5para aprovar tal medida — assim como ocorreu com o

1 LIMONGI, Fernando. O passaporte de Cunha e o Impeachment: a crônica de uma tragédia anunciada, Novos Estudos, n. 103, p. 99, 2015; LIMONGI, Fernando. Impedindo Dilma, Novos Estudos, p. 5, 2017; LIMONGI, Fernando; FIGUEIREDO, Argelina Cheibub. A crise atual e o debate institucional. Novos Estudos, n. 109, p. 78-97, 2017.

2 PEREIRA, Thomaz. Quais os poderes de Eduardo Cunha no impeachment? JOTA Info, 5 abr. 2016. Disponível em: https://www.jota.info/stf/supra/quais-os-poderes-de-eduardo--cunha-no-impeachment-05042016. Acesso em: 20 nov. 2018.

3 G1. Para Cunha, decisão do STF de proibir chapa avulsa “afasta a disputa”. 17 dez. 2015.

Disponível em: http://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachment-de-dilma/noticia/2015/12/cunha-diz-que-respeita-decisao-do-stf-sobre-impeachment-e-vai-cumprir. html. Acesso em: 20 nov. 2018.
4 MACEDO, Fausto. Supremo nega liminar e deine votação do impeachment do Norte para o

Sul, alternadamente. Estadão, 14 abr. 2016. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/ blogs/fausto-macedo/supremo-nega-liminar-e-deine-votacao-do-impeachment-do-nor-te-para-o-sul-alternadamente/. Acesso em: 20 nov. 2018.
5 Ao longo deste trabalho, utilizaremos como sinônimos os termos “poderes”, “autoridades”,

“competências” e “prerrogativas”.

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caso de Cunha, criando para si novos poderes informais para conduzir o processo de impeachment. O pressuposto para tanto é que os poderes formais estabelecidos na CRFB, leis ou regimentos internos não são suicientes para ditar quem tem a competência para tomar determinada medida em todas as situações concretas.

Segundo, é possível que essa eventual derrota de um presidente fraco, mol-dada em torno de conlitos sobre a alocação de competências, possa gerar pre-cedentes. Estes precedentes poderão ser utilizados no futuro por atores políti-cos para impedir que o presidente faça alegações airmando ter autoridade para exercer aquele poder especíico. Com isso, está consumada a perda de poderes para o cargo da Presidência da República — que passam a ser poderes informais de outro ator —, sem que haja alterações no texto da CRFB, de leis ou do regimento interno das Casas do Congresso.

Terceiro, presidentes fracos podem gerar oportunidades para que ocor-ram os conlitos sobre a alocação de competências entre os Poderes — dado que outros atores poderão se aproveitar da fraqueza presidencial para afetar decisões de longo prazo. E este novo precedente poderá ser utilizado no futuro para demonstrar que a perda de poder eventual de um presidente fraco gerará efeitos para os próximos presidentes, causando perdas para o cargo da Presidência da República.

Dessa forma, unindo as três etapas, pretendemos demonstrar que (i) de-terminados conlitos entre a Presidência da República e o Congresso — por mais que o plano de fundo seja a disputa sobre a implementação de policies — serão moldados em termos de quem é competente para tomar aquela atitude. Com isso, o vencedor neste conlito especíico poderá (ii) gerar legados de modiicação do desenho institucional: a autoridade alocada para um ator político em determinado momento poderá ser utilizada futuramente como precedente que justiique aquela alocação de autoridade, tornando-a deinitiva. E, por im,
(iii) a existência de um presidente fraco é um facilitador ou catalizador destes conlitos que geram precedentes.

Para limitação do escopo do trabalho, analisamos o poder legislativo mais expressivo da Presidência da República, a edição de medidas provisórias6. Mais

6 Como as medidas provisórias modiicam o status quo imediatamente, a literatura entende que os custos para o Congresso as derrubarem são maiores do que aqueles associados à rejeição de projetos de lei, por exemplo. Analisar o poder de editar medidas provisórias é importante por duas razões: (i) é um poder frequentemente utilizado por presidentes da República e (ii) sendo o poder legislativo mais expressivo disponível para presidentes, é de se supor que presidentes zelem pela defesa de suas prerrogativas de editar medidas provisórias. Apesar de o objetivo deste trabalho ser exploratório — isto é, não buscamos nenhuma relação de causalidade necessária entre força presidencial e legados de perda de poderes, apenas demonstramos que esta é uma possibilidade a ser investigada no futuro — é possível pensar que há boas razões para futuros estudos testarem se é possível que

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especiicamente, utilizaremos como estudo de caso as tentativas de devolu-ção de medidas provisórias pela presidência do Senado. Diferentemente da aprovação e da rejeição de medidas provisórias pelas Casas do Congresso7, a devolução é um poder que não está previsto na CRFB, em legislação ordinária ou regimento interno do Senado, Câmara ou do Congresso. A devolução de medida provisória (MP), quando bem-sucedida, signiica que o presidente do Senado poderá unilateralmente sustar os efeitos da MP, de modo que ela não terá mais a capacidade de alterar o status quo imediatamente8. Nos casos que analisaremos sobre tentativas de devolução de medidas provisórias, por mais que haja discussões sobre policy envolvidas no jogo político, os argumentos são moldados em termos de autoridade para realizar aquela medida.

Em um primeiro momento, houve a tentativa fracassada de devolução de MP editada pelo presidente Lula. Já no segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, contudo, a devolução de MP ocorreu de forma bem-sucedida, pouco antes do início do processo formal de impeachment. Tratava-se de momento em que a presidente se encontrava com popularidade baixa, e reduzido apoio no Congresso — portanto, fraca politicamente —, o que permitiu ao presidente do Senado devolver uma MP9. No caso, Dilma não reagiu; aceitando a derrota política, utilizou o segundo poder legislativo mais relevante à disposição de um presidente da República, a apresentação de projeto de lei em regime de urgência. Ao aceitar esta perda de poderes, Dilma permitiu o self-aggrandizement do presidente do Senado, que pode ter criado um precedente.

A criação de precedentes é relevante. A...

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