Os pressupostos objetivos

AutorFelipe Teixeira Neto
Páginas145-203
CAPÍTULO 4
OS PRESSUPOSTOS OBJETIVOS
Apreciados os pressupostos que, partindo de uma acepção dita clássica da res-
ponsabilidade civil, tendem a vir associados à conduta, o que permitiu, a partir do
seu cotejo e do exame da sua compatibilidade com uma pretensa teoria geral da im-
putação objetiva, aferir o papel ocupado pela ação ou omissão lesivas que se colocam
como objeto do juízo de imputação, cumpre examinar aqueles que se encontram
diretamente ligados ao prejuízo em si.
E, partindo de uma linha sistemática de reconstrução teórica, podem ser elenca-
dos aqueles pressupostos assim entendidos como elementos objetivos da fattispecie,
no caso, o dano juridicamente relevante e o nexo causal1.
Por isso tudo é que a simples transposição dos preceitos penalísticos, a permitir
conceber-se a responsabilidade civil enquanto uma resposta ao ato tido por ilícito ou
antijurídico, é não apenas responsável pela insuf‌iciência do recurso aos preceitos de
ordem subjetiva, mas igualmente insatisfatória. Af‌igura-se, portanto, inadequada a
atender aos anseios atualmente esperados da disciplina, quais sejam, a reparação e
a prevenção de danos2.
1. Assim, CASTRONOVO, Carlo. Sentieri di responsabilità civile europea. Europa e Diritto Privato, Milano,
n. 4, 2008, p. 787-788. Com sistematização semelhante, CORDEIRO, António Menezes. Da Responsabi-
lidade Civil..., cit., p. 423, fala em dois planos de verif‌icação dos pressupostos da responsabilidade civil:
um primeiro, de natureza fática, assim dito em razão de ser perceptível pelos sentidos e análogo ao aqui
denominado objetivo, e um segundo, de natureza jurídica, pois relacionado ao agente e às consequências
normativas da sua conduta. A problemática desta proposta ao plano de estudos em curso está no fato de
que, contrariamente ao que se poderia supor a partir de uma linha teórica mais tradicional (rectius, mais
conectada com a imputação idealizada a partir do ato ilícito), os elementos ora denominados objetivos
não possuem mais uma natureza preponderantemente fática, porquanto deveras juridicizados a partir na
concepção de responsabilidade civil que serve de marco teórico à teoria que se busca sistematizar. Por isso
a opção pelo uso da dicotomia pressupostos subjetivos versus pressupostos objetivos.
2. RODOTÀ, Stefano. Il problema..., cit., p. 56-57. No que tange às funções da responsabilidade civil,
consoante, aliás, mencionado precedentemente, já se teve oportunidade de defender a acidentalidade
do intento punitivo, que deve fazer as vezes de fator de correção de eventuais imperfeições do sistema
quando acarretem na sua inef‌iciência, não se constituindo, por isso, em missão precípua da disciplina,
tal qual sucede com as responsabilidades penal e administrativa, por exemplo. Já no que guarda à função
preventiva, consoante delineado quando do estudo dos fundamentos da responsabilidade civil, aparenta-se
mais genuinamente conectada com a responsabilidade por culpa do que com aquela de caráter objetivo,
já que, nesta, a prova pelo agente da adoção de medidas ef‌icazes para evitar o evento não basta a elidir o
seu dever de reparação. Sobre o tema, além do já tratado, consinta-se reenviar a TEIXEIRA NETO, Fe-
lipe. Dano Moral Coletivo. A conf‌iguração e a reparação do dano extrapatrimonial por lesão a interesses
difusos. Curitiba: Juruá, 2014, p. 178; igualmente, TEIXEIRA NETO, Felipe. Há espaço para uma função
punitiva..., cit., p. 269 e ss.
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RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
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1. O DANO
Consoante já referido em momento anterior, é largamente corrente a af‌irmação
no sentido de que o dano é o pressuposto central da responsabilidade civil, pois a sua
ausência, em qualquer dos regimes vigentes, afasta a viabilidade da imputação civil.
Não obstante seja uma af‌irmação que encerra certo consenso, não é de se desconsi-
derar que, em uma disciplina sempre propícia a debates e divergências, até mesmo
questões centrais e aparentemente incontroversas parecem ser sempre postas a prova3.
Neste cenário, apresentam-se no mínimo paradoxais os inf‌luxos da responsa-
bilidade civil que, ao passo em que se volta ao dano e à sua reparação por meio do
reforço dos regimes de imputação objetiva, abre-se igualmente a possibilidades que
suscitam acalorado debate, pois tendentes a reconduzi-la a uma especial valoração
da f‌igura do lesante, por meio de um “direito das condutas lesivas” em contraponto
a um “direito de danos”, debate este que perpassa a sempre viva discussão acerca
das funções do instituto4.
Ocorre que, em matéria de demarcação do campo operativo da responsabilidade
civil, parece gozar ainda de algum consenso o fato de que a identif‌icação, dentre os
diversos prejuízos inerentes à vida em sociedade, é a sua missão precípua para, a
partir disso, determinar quais darão ensejo a uma obrigação indenizatória5. E não
seria diferente no cenário de uma teoria geral da imputação objetiva.
3. Para um debate sobre a possibilidade de responsabilidade civil sem dano, ver CARRÁ, Bruno Leonardo
Câmara. Responsabilidade Civil sem Dano. Uma análise crítica. Limites epistêmicos a uma responsabilidade
civil preventiva ou por simples conduta. São Paulo: Atlas, 2015. Com uma visão crítica acerca da proposta,
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. Notas sobre a teoria da responsabilidade civil sem dano.
Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, a. 3, v. 6, p. 89- 103, jan/mar. 2016.
4. Sobre o tema, LEVY, Daniel de Andrade. Responsabilidade Civil. De um direito dos danos a um direito das
condutas lesivas. São Paulo: Atlas, 2012, p. 217 e ss. Alude-se à existência de um paradoxo, porque justamente
a ablação de toda e qualquer reminiscência sancionatória, consoante largamente defendido precedentemente,
parece negada por meio de pretensões que não apenas tratem de funções dissuasórias ou mesmo punitivas,
mas venham mesmo a propor uma responsabilidade civil centrada da conduta lesiva, num nítido regresso às
premissas que ensejaram a sistematização oitocentista e que restaram por ser depuradas ao longo do século
XX. Ao que parece, o problema reside em se exigir da responsabilidade civil mais do que talvez ela tenha
condições de dar sem ser desvirtuada por completo; daí que não obstante os objetivos que se pretendem
alcançar sejam relevantes, nutrem-se reais dúvidas sobre a conveniência de relegá-los à responsabilidade
civil e não a regimes jurídicos outros (como os de direito administrativo, v.g., para não falar no direito penal)
que, na sua essência, têm por f‌inalidade a resposta (sancionatória) ao ilícito ou mesmo a prevenção geral
em si, que no campo da imputação de danos tenderiam a assumir relevância apenas ref‌lexa.
5. ZWEIGERT, Konrad; KÖTZ, Hein. Introduzione al Diritto Comparato. Istituti. Edizione italiana a cura di
Adolfo di Majo e Antonio Gambaro. Milano: Giuffrè, 1995, v. II, p. 316. A este respeito, refere TRIMARCHI,
Pietro. Istituzioni di Diritto Privato. 18ed. Milano: Giuffrè, 2009, p. 109, que nem todos os danos são vedados,
pois, por vezes, o desenvolvimento de uma série de atividades implica na causação de prejuízos a terceiros,
prejuízos estes que poderão ou não constituir fonte de uma obrigação indenizatória. Esta demarcação do
alcance do instituto da responsabilidade civil é que, na atualidade, vem atrelada ao conteúdo do conceito
de dano juridicamente relevante, ou seja, aquele que efetivamente importa em matéria de imputação civil.
Com igual opinião, dentre outros, MARTINS-COSTA, Judith. Dano moral à brasileira, cit., p. 7074, ao
af‌irmar que os f‌iltros de seleção da reparabilidade são imprescindíveis, pois a extensão dos bens jurídicos
é demasiado alargada para que todo e qualquer prejuízo a eles causados possa ensejar uma reparação. Na
mesma linha, MONTEIRO, Jorge Ferreira Sinde. Responsabilidade por conselhos..., cit., p. 175.
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CAPÍTULO 4 • OS PRESSUPOSTOS OBJETIVOS
1.1 A construção da noção jurídica de dano
Tendo em conta as ressalvas referidas no preâmbulo e com o cuidado de não
encerrar discussões que, neste momento, seriam descontextualizadas (para dizer o
mínimo), é de se assinalar, ao menos a partir do corte cognitivo que pauta a inves-
tigação em curso, não existirem dúvidas de que o dano é não apenas importante,
mas mesmo essencial à existência de um regime geral de responsabilidade objetiva.
Tal leva em conta não apenas o intento reparatório perseguido pelo instituto, como
também justif‌ica a já tratada irrelevância (na sua feição tradicional) dos elementos
subjetivos da fattispecie, sem prejuízo de funções outras que possam ser atribuídas
à imputação.
Resta, por isso, num cenário de tentativa de estruturação de um regime unitário,
demarcar no que consiste o dano dito imprescindível ao juízo de imputação6 e quais
são os seus contornos atuais, com uma posterior compatibilização destas conclusões
no campo da responsabilidade objetiva enquanto instituto, sempre tendo em conta a
diversidade de modelos e a sua conexão com os demais pressupostos ao surgimento
do vínculo obrigacional em causa.
1.1.1 O dano em sentido naturalístico
Na tradição continental sistematizada a partir da codif‌icação oitocentista, a par
de os Códigos Civis, de regra, não def‌inirem de modo direto no que consiste dano7,
segue-se a tendência da demarcação de um conceito unitário para o instituto. Tem-
-se nesta constatação dois pontos de signif‌icativa relevância que, aparentemente,
poderiam parecer contraditórios entre si: o primeiro deles é a tendencial omissão
legislativa na delimitação do conceito em causa, relegando tal missão à doutrina e à
jurisprudência; o segundo, a unicidade do conteúdo atribuído ao pressuposto cen-
tral da responsabilidade civil que, por isso mesmo, deve ter amplitude suf‌iciente a
abranger todas as situações submetidas a um juízo de imputação8.
A estruturação inicial da responsabilidade civil (e do direito das obrigações
como um todo) a partir do dogma da vontade, nos termos do qual em sendo livre para
6. Para se alcançar êxito neste propósito, não se pode deixar de ter no horizonte que por vezes são vacilantes os
limites dogmáticos do interesse indenizável, nomeadamente tendo por perspectiva o amplo reconhecimento
dos danos de natureza extrapatrimonial. Sobre o tema, MARTINS-COSTA, Judith. Dano moral à brasileira,
cit., p. 7075.
7. Exceção à regra é o Código Civil austríaco que, no seu artigo 1293, estabelece que “[o] dano é todo o prejuízo
que alguém sofre em seu patrimônio, nos seus direitos ou na sua pessoa”. Sobre o tema, SILVA, Clóvis do
Couto e. O conceito de dano no direito brasileiro e comparado. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 80, n. 667,
p. 07-16, mai. 1991, p. 07.
8. A contradição decorreria justamente do fato de, em inexistindo uma def‌inição legal para o instituto, a cons-
trução casuística dos seus termos pudesse, em tese, implicar em uma ausência de unicidade acerca da noção
de dano, que poderia ser tão variada quanto fossem as situações em que delimitados os seus termos. Tal é o
que ocorre, aliás, no universo jurídico dos países de common law, onde, sem prejuízo de alguns elementos
comuns, pode-se encontrar mais de uma acepção para a noção de dammage. Sobre o tema, ALPA, Guido.
Diritto della responsabilità civile. Roma-Bari: Laterza, 2003, p. 15.
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