Os pressupostos subjetivos

AutorFelipe Teixeira Neto
Páginas103-144
CAPÍTULO 3
OS PRESSUPOSTOS SUBJETIVOS
É incontroverso que, num pretenso regime geral de responsabilidade objetiva, a
culpa é pressuposto irrelevante ao surgimento da obrigação indenizatória, conclusão
que não demanda maiores debates, já que decorre da própria demarcação negativa
que o instituto corriqueiramente recebe. Mas isso não signif‌ica dizer que, na linha da
irrelevância da culpa, possa-se – ao menos sem uma análise individual mais acurada
– af‌irmar prima facie que os demais pressupostos também ditos subjetivos sejam de
pronto repelidos e taxados como irrelevantes.
Para a estruturação de uma investigação que se pretende científ‌ica, as conclusões
devem vir precedidas de experimentação, mesmo que teórico-dogmática, no sentido
de avaliar as hipóteses e, após a sua verif‌icação, concluir pela sua (ir)relevância ao
enunciado que, ao cabo, se pretende propor. Daí porque se passa, em seguida, ao
exame dos demais pressupostos que, ao lado da culpa, integram a fattispecie geral
de responsabilidade na sua feição subjetiva, a saber: a imputabilidade e a ilicitude.
A construção tradicional de uma teoria da responsabilidade civil com base no
conceito de ato ilícito, da qual deriva a ideia da obrigação indenizatória enquanto
sanção, sempre esteve baseada sobre um questionamento formulado acerca do com-
portamento do agente10. Tal premissa – que sequer se constitui em dogma acabado
nem ao mesmo à própria responsabilidade subjetiva, que passa a assumir, inclusive,
outras perspectivas – deve ser levada em conta quando da verif‌icação dos pressupostos
tradicionais ao juízo de imputação que, de qualquer modo, demandam uma compa-
tibilização circunstancial, especialmente à vista de uma perspectiva de estruturação
de um regime geral de matriz objetiva.
1. A IMPUTABILIDADE
O primeiro dos pressupostos sob investigação é a imputabilidade, que está
associada à viabilidade de que a ação ou a omissão geradoras do dano possam ser
coligadas ao agente que se pretende responsável11. Daí a necessidade de que, antes de
10. COMPORTI, Marco. Esposizione al pericolo..., cit., p. 32-33.
11. Por isso que, não raro, o pressuposto em causa vem tratado pela doutrina como parte do item denominado
fato voluntário do lesante, justamente em razão da associação entre voluntariedade e imputabilidade en-
quanto possibilidade de entender e de querer. Assim, LEITÃO, Luis Manuel Teles de Menezes. Direito das
Obrigações. 6ed. Coimbra: Almedina, 2007, v. I, p. 287; no direito brasileiro, dentre outros, VENOSA, Sílvio
de Salvo. Direito Civil. Responsabilidade Civil. 6ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 20. É comum, ainda, a sua
análise enquanto pressuposto da culpa, o que resta por lhe atribuir o status de pressuposto apenas indireto
da responsabilidade civil. Neste sentido, COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. 11ed.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 103EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 103 02/12/2021 09:13:5602/12/2021 09:13:56
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA FRAGMENTARIEDADE À RECONSTRUÇÃO SISTEMÁTICA
104
se aferir a sua compatibilidade com um regime de responsabilidade objetiva, inicie-se
com uma demarcação do seu conteúdo jurídico.
1.1 Premissas teóricas
O pressuposto da imputabilidade foi, sem sombra de dúvidas, talhado sob
os auspícios da culpa enquanto fundamento unitário da responsabilidade civil12,
especialmente como decorrência da máxima segundo a qual a liberdade de agir do
sujeito torna-o responsável pelos danos a que der causa13. Para exercer tal liberdade
era imprescindível que o sujeito pudesse compreender e querer os atos por ele pra-
ticados, sob pena de caracterizar o seu comprometimento por falta de consciência
da sua prática14.
Por isso mesmo, tende a apresentar-se por meio de uma previsão negativa associa-
da à ideia de não imputabilidade, que passa a fazer as vezes de um autêntico impeditivo
do surgimento do dever de reparar danos enquanto pressuposto da culpabilidade15.
Nesta linha e partindo de um mesmo ponto de referência, no caso, a exigência
da culpa enquanto pressuposto elementar à imputação (que é verif‌icável tanto na
hipótese de responsabilidade penal, quanto naquela fundada em um regime geral
de responsabilidade civil subjetiva), é possível atestar a existência de uma inicial
identidade entre o seu conteúdo nas esferas civil e penal16. Identidade esta que não
obstante venha marcada pela ruptura com eventuais elementos de cunho ético-mo-
ral ou mesmo com a existência de consciência acerca da ilicitude do fato, não está
isenta de críticas, que virão fundadas justamente na distinta disciplina estabelecida
Coimbra: Almedina, 2008, p. 580; igualmente, GOMES, Orlando. Responsabilidade Civil. Atual. Edvaldo
Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 74.
12. COMPORTI, Marco. Esposizione al pericolo..., cit., p. 251. Neste mesmo senso, af‌irmando que culpa e im-
putabilidade constituem um continuum de noções jurídicas, MONATERI, Pier Giuseppe. La responsabilità
civile. In: SACCO, Rodolfo. Tratato di Diritto Civile. Le fonti delle obbligazioni. Torino: UTET, 1998, v. 6,
t. 3, p. 260.
13. Para um aprofundamento teórico acerca da relação entre culpa e imputabilidade, ver BARBOSA, Mafalda
Miranda. O papel da imputabilidade no quadro da responsabilidade delitual. Breves apontamentos. Boletim
da Faculdade de Direito, Coimbra, n. 82, p. 485-534, 2006, p. 501 e ss.
14. GOMES, Orlando. Responsabilidade Civil, cit., 2011, p. 74.
15. RICCIO, Giovanni Maria. L’imputabilità. In: STANZIONE, Pasqualle (dir.). Trattato della Responsabilità
Civile. Responsabilità Extracontrattuale. Padova: CEDAM, 2012, p. 64. Destaca o autor, nesta mesma linha,
a não infrequente variação interpretativa do termo imputabilidade, o que decorre do seu uso em variadas
situações, não raro pela própria lei, fazendo com que assuma, a partir de uma linguagem comum, as noções
de “referência” (riferibilità) e de “ligação” (collegamento) do fato ilícito ao seu autor. Todavia, como assinala
DE CUPIS, Adriano. Il Danno. Teoria Generale della Responsabilità Civile. 3ed. Milano: Giuffrè, 1979, v. I, p.
178, aqui a designação imputabilidade assume um conteúdo mais estreito do que aquele que normalmente
pode conter, inclusive em outros momentos de referimento acerca da própria responsabilidade civil; tanto
que é frequente – inclusive no curso da presente investigação – a referência aos termos imputação de danos
e imputação civil como sinônimos de responsabilidade civil em geral.
16. VISINTINI, Giovanna. Trattato breve della responsabilità civile. Fatti illeciti. Inadempimento. Danno risar-
cibile. 2ed. Padova: CEDAM, 1999, p. 497. Segundo a autora, verif‌ica-se, nesta temática, uma transposição
ao regime civilístico das elaborações conceituais e das soluções interpretativas desenvolvidas na seara
penalística, realidade vivenciada em diversos sistemas jurídicos, dentre eles e com especial relevo o francês.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 104EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 104 02/12/2021 09:13:5602/12/2021 09:13:56
105
CAPÍTULO 3 • OS PRESSUPOSTOS SUBJETIVOS
para cada um dos ramos em exame (punitivo-sancionatória para o direito penal e
ressarcitório-satisfativa para o direito civil) 17.
Estabelece-se, deste modo, uma conexão entre a ideia de imputabilidade e a
existência da capacidade de entender e de querer18, o que se refere ao fato danoso
atribuível ao agente e não propriamente o dano por ele produzido. Assim é que, num
plano teórico, a imputabilidade se constitui em elemento que nasce associado ao fato
gerador de responsabilidade civil, conectando-o ao sujeito que o praticou e, desta
feita, permitindo o surgimento do dever de indenizar19.
E a consequência para a ausência de imputabilidade, ou seja, para a carência
da condição de entender e de querer20 (desde que esta ausência não decorra da sua
própria culpa21), é justamente a ausência de responsabilidade civil. Daí porque o
destaque feito em momento precedente à delimitação negativa do pressuposto em
causa, pois se não conf‌igurada uma causa de inimputabilidade22, o sujeito é conside-
rado imputável e, portanto, passível de ser civilmente responsável pela reparação23.
Diante desta acepção negativa é que assumem relevo as causas de inimputabili-
dade que, no direito civil, não estão elencadas de modo expresso (salvo as relaciona-
das à idade), relegando-se à valoração judicial a verif‌icação das situações nas quais
o sujeito, por não ter condições de entender e de querer, não pode responder pelos
17. RICCIO, Giovanni Maria. L’imputabilità, cit., p. 65.
18. Na explicitação de ALPA, Guido. La responsabilità..., cit., p. 124, está representada na atitude do sujeito de
entender, de dar-se conta do que acontece, de compreender o que se deve fazer, de querer e de determinar-se
conforme o comportamento a seguir.
19. Daí porque se tem como imputável o indivíduo capaz de prever os efeitos e de mensurar o valor dos atos
por ele praticados, determinando-se em conformidade com o juízo por ele realizado a este respeito. Assim,
VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. 10ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 563.
20. A referência aos verbos entender e querer busca acentuar a relevância de que a conduta seja valorada nas
suas esferas intelectiva (atitude de conhecimento) e volitiva (atitude de autodeterminação), devendo esta-
rem, ambas, preservadas. Sobre o tema, SCOGNAMIGLIO, Renato. Responsabilità Civile e Danno. Torino:
Giappichelli, 2010, p. 54.
21. Os Códigos Civis italiano e português – ao contrário do brasileiro – são expressos a este respeito, consoante
regra dos seus artigos 2.046, in f‌ine, e 488, n. 2, respectivamente. No plano teórico, para um maior apro-
fundamento sobre a noção de actio libera in causa extraível dos referidos preceitos e associada às situações
nas quais o próprio agente se coloca na condição de inimputabilidade e, por isso, responde por seus atos,
já que, como se extrai de uma literal tradução do brocardo latino, a ação foi livre na sua causa, consinta-se
reenviar ao panorama traçado por RICCIO, Giovanni Maria. L’imputabilità, cit., p. 66-68.
22. Conf‌iguração esta que, salvo nas situações em que a lei expressamente a estabeleça de modo peremptório
(v.g., menores de idade e interditos), deve ser provada por quem dela se benef‌icia; em outras palavras, a
presunção (relativa) é de imputabilidade. Assim, CORDEIRO, António Menezes. Tratado..., cit., v. II, t. III,
p. 440.
23. Nesta linha, o Código Civil italiano, no seu artigo 2.046, expressamente estabelece que “[n]on risponde
delle conseguenze del fatto dannoso chi non aveva la capacità di intendere e di volere al momento in cui
lo ha comesso, a meno che lo stato di incapacita derivi da sua colpa”. A regra do Código Civil português
é muito similar, conforme preceitua o seu artigo 488, n. 1, in verbis: “[n]ão responde pelas consequências
do facto danoso quem, no momento em que o facto ocorreu, estava, por qualquer causa, incapacitado de
entender ou de querer”. A lei civil brasileira não contém dispositivo específ‌ico acerca da imputabilidade
no campo da responsabilidade civil, não obstante reconheça a doutrina ser extraível da regra do artigo 186
do Código Civil de 2002 a sua imprescindibilidade; assim, DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil.
12ed. Atual. Ruy Berford Dias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 480.
EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 105EBOOK RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA.indb 105 02/12/2021 09:13:5602/12/2021 09:13:56

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT